Agosto é um mês especial para a conscientização sobre a mielomeningocele, também conhecida como Espinha Bífida, uma condição congênita que afeta a medula espinhal e as vértebras do feto.
Conhecida como Agosto Laranja, a campanha deste mês visa aumentar o entendimento sobre a condição, promovendo educação e apoio às famílias afetadas.
Mas, o que é mielomeningocele?
Segundo informações obtidas no site do Centro de Medicina Fetal Gestar, localizado em São Paulo, a mielomeningocele, também conhecida como Espinha Bífida Aberta, é a anomalia congênita mais comum do sistema nervoso central, ocorrendo em aproximadamente 1 em cada 1.000 nascimentos no Brasil.
Esta condição resulta de uma formação inadequada do tubo neural durante as primeiras semanas de gestação, levando a uma abertura na coluna vertebral, onde as raízes nervosas da medula ficam expostas ao líquido amniótico.
Essa exposição pode causar danos adicionais ao tecido nervoso, resultando em paralisia dos membros inferiores, dificuldades intelectuais e alterações nas funções intestinais, urinárias e ortopédicas.
A condição também pode estar associada à malformação de Arnold-Chiari tipo II, caracterizada por deformações cerebrais específicas.
Como identificar precocemente?
O diagnóstico precoce da mielomeningocele é possível por meio da ultrassonografia morfológica fetal no primeiro trimestre, que pode detectar alterações cerebrais associadas à condição.
A translucência intracraniana, uma cavidade no cérebro que desaparece em fetos com espinha bífida, é um dos sinais visíveis.
Quando a condição não é identificada no primeiro trimestre, ela costuma ser diagnosticada no segundo trimestre, durante exames morfológicos mais detalhados, onde o defeito na coluna é diretamente observado.
Tratamentos para maior qualidade de vida
O tratamento da mielomeningocele tem evoluído significativamente.
Até alguns anos atrás, a correção cirúrgica era realizada apenas após o nascimento, o que resultava em altas taxas de mortalidade e complicações.
No entanto, desde o estudo MOMs trial de 2011, a cirurgia intrauterina se tornou uma alternativa eficaz, aumentando as chances de mobilidade e reduzindo a necessidade de intervenções cerebrais após o nascimento.
Nem todos os fetos são candidatos à cirurgia intrauterina; os critérios incluem idade gestacional específica e localização da abertura na coluna.
Contribuições médicas especializadas
O tratamento da mielomeningocele requer uma abordagem multidisciplinar.
O neurocirurgião Dr Orlando Maia destaca a importância do diagnóstico precoce e da prevenção por meio do uso adequado de ácido fólico antes e durante a gestação.
Ainda segundo o neurocirurgião, sócio fundador e diretor-médico da rede Interneuro “o neurologista, ou neurocirurgião, vai ajudar no diagnóstico precoce. O diagnóstico intrauterino vai ajudar muito na qualidade de vida do paciente. Claro que o melhor caminho é a prevenção. Então, a utilização prévia de ácido fólico vai prevenir”.
Dr. Maia, que também é chefe do Serviço de Neurocirurgia e Endovascular no Hospital Santa Tereza, em Petrópolis, ainda afirma que, quando já existe a deficiência, o neurocirurgião vai agir com cirurgia que vai retornar com as estruturas nervosas para dentro do canal vertebral.
“A cirurgia pode ser feita no útero, durante o desenvolvimento fetal ou, da forma mais comum, após o nascimento” finaliza o Dr. Orlando Maia.
Já a fisioterapeuta aposentada Dr.ª Alice Rocha Soares aponta que “a fisioterapia é basicamente uma parte de suma importância para o fortalecimento e resistência dos pacientes, sempre respeitando as suas limitações, e pacientes que tenham a mielomeningocele precisam desse acompanhamento principalmente por conta da lesão ser na coluna, onde quanto mais exercícios feitos, alojamentos, mais lhe dará qualidade de vida, independência futuras e o entendimento que poderá praticar tudo desde que respeito seus limites”.
O cirurgião ortopedista e médico do esporte Dr. Wander Ama destaca que “o tratamento ortopédico para pessoas com mielomeningocele é multifacetado e visa melhorar a funcionalidade, prevenir deformidades e maximizar a qualidade de vida”.
Ainda segundo o médico, os principais aspectos desse tratamento incluem:
1. Avaliação e diagnóstico precoce
Ultrassonografia e Amniocentese: Durante a gravidez, pode-se realizar exames para detectar a mielomeningocele.
Exame físico completo: Após o nascimento, uma avaliação detalhada é essencial para identificar a extensão das anomalias neurológicas e ortopédicas.
2. Intervenção cirúrgica
Correção da lesão: A cirurgia para fechar o defeito é geralmente realizada logo após o nascimento para prevenir infecções e danos adicionais à medula espinhal.
Tratamento de Hidrocefalia: A colocação de uma derivação ventrículo-peritoneal pode ser necessária se houver acúmulo de líquido cefalorraquidiano.
3. Reabilitação funcional
Fisioterapia: Essencial para promover a força muscular, mobilidade articular e habilidades motoras funcionais.
Terapia ocupacional: Focada em auxiliar a criança a desenvolver habilidades para as atividades diárias, favorecendo a independência.
4. Uso de órteses e dispositivos de mobilidade
Órteses: Podem ser utilizadas para estabilização articular, melhora do alinhamento e auxílio na marcha.
Cadeiras de rodas e andadores: Dependendo do nível da lesão e da capacidade funcional, esses dispositivos podem ser indispensáveis para a mobilidade.
5. Gestão de deformidades ortopédicas
Escoliose e Cifose: Tratamento pode incluir órteses, fisioterapia e, em casos severos, cirurgia.
Deformidades dos pés e joelhos: Como pé equinovaro e joelho valgo, que podem necessitar de correção cirúrgica ou uso de órteses.
6. Cuidados com pele e úlceras de pressão
Prevenção: Educação sobre mudança de posição, uso de colchões especiais e cuidados com a pele para prevenir úlceras de pressão.
7. Educação e suporte para a família
Orientação: Importante fornecer informações sobre a condição, cuidados diários e recursos disponíveis.
Apoio psicológico: A inclusão de psicólogos ou assistentes sociais pode ser benéfica para lidar com os desafios emocionais e sociais.
8. Monitoramento contínuo
Avaliações Regulares: Consultas periódicas com uma equipe multidisciplinar para monitorar o desenvolvimento, ajustar tratamentos e prevenir complicações.
“A abordagem do tratamento deve ser personalizada, considerando a gravidade da lesão neurológica e as necessidades individuais de cada paciente” finaliza Dr. Wander que também complementa que o suporte multidisciplinar, envolvendo ortopedistas, neurocirurgiões, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, e outros profissionais da saúde, é fundamental para otimizar os resultados.
Dr.ᵃ Lorella Auricchio, urologista do Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE), também responde sobre os desafios urológicos mais comuns em pacientes com mielomeningocele e como são abordados:
“A maioria das crianças com mielomeningocele vai apresentar bexiga neurogênica e disfunção intestinal. O diagnóstico de mielomeningocele pode ser realizado durante o pré-natal, e a correção pode ser feita intrauterino. Porém, a falta de planejamento familiar e de um pré-natal adequado podem prejudicar a identificação precoce da doença. A investigação das disfunções urinárias é fundamental, pois esses pacientes apresentam potencial risco grave de lesão no trato urinário superior, ou seja, nos rins”.
A urologista também destaca que infecção urinária de repetição e incontinência urinária são sintomas frequentes nesses pacientes, que devem ser investigados e encaminhados a um especialista.
“Exames de urina, ultrassom do aparelho urinário e estudo urodinâmico são exames utilizados para avaliação desses pacientes, porém nem sempre são exames de fácil acesso, principalmente a urodinâmica em bebês e crianças”.
Ela ressalta que o acesso a materiais e medicações adequados também pode impactar o tratamento desses pacientes.
Como exemplo, Dr.ᵃ Lorella menciona o cateterismo intermitente limpo, que consiste na passagem da sonda vesical de alívio para reduzir a pressão na bexiga e, a longo prazo, proteger os rins.
Além disso, ela explica que medicamentos orais podem ser usados para reduzir as contrações involuntárias da bexiga e as perdas de urina entre as sondagens, melhorando a qualidade de vida dos pacientes.
“Outros tratamentos mais invasivos podem ser avaliados, dependendo de cada caso”, finaliza a especialista.
Convivendo com mielomeningocele
No Brasil, a mielomeningocele afeta cerca de 2,42 bebês a cada 10 mil nascimentos, totalizando aproximadamente 750 novos casos anualmente.
A Associação Brasileira de Espinha Bífida (Abrasse) reporta que, até 2018, apenas 12% das crianças com mielomeningocele tinham acesso à cirurgia intrauterina.
Após intensificar suas ações, a Abrasse conseguiu aumentar esse número para 85% em 2023 e 2024.
A trajetória de Greice Silva, uma desenhista de Recife, é um desses casos de quem foi afetado pela mielomeningocele.
Greice Silva compartilha uma jornada profunda e comovente desde o nascimento até os dias atuais.
Sua mãe, inicialmente despreparada para lidar com uma gravidez complicada, enfrentou um parto inesperado e desafiador.
“Minha mãe na época quando descobriu que estava de fato grávida de mim, não tinha ideia de muita coisa, mas entendia que poderia ser uma gravidez ‘normal’ como foi do meu irmão, ao decorrer dos meses mesmo fazendo todo pré-natal e na época não tinha essa facilidade de saber de tudo, ela se sentia muito mal, vomitava a cada minuto (quase) e se sentia fraca por simplesmente não conseguir segurar quando se alimentava, as comidas geralmente batia e voltava, excesso de saliva, e isso ela foi perguntar ao médico, onde afirmou com total certeza que ela estaria ‘louca’ por achar que eu tivesse alguma deficiência, pois por todos os sintomas ela tinha medo que algo estivesse acontecendo comigo ainda na barriga, mas todos os exames davam normais, nenhuma alteração aparente”.
Foi aí que Greice nasceu, e com isso veio a revelação da espinha bífida de Greice e a necessidade urgente de transferência para o Hospital da Restauração.
Esses fatos marcaram o início de uma batalha intensa pela sobrevivência e recuperação da filha.
“Nasci muito rápido, minha mãe deu entrada na maternidade e já não podia esperar, a médica se virou e quando voltou já estava certa que não podia ir pra uma sala especializada, que na época também era como as de hoje, só colocou a luva e me retirou, ao notar minha Espinha Bífida aparente nas costas (como se fosse um ossinho de água, mas fechadinho) tentou tapar da minha mãe, para que ela não visse, porém, minha mãe conseguiu ver, e ali ela já começava a sentir o medo subindo internamente, a vontade de chorar e quando chegaram falando que teriam que dar entrada imediatamente para o Hospital Da Restauração, hospital público de porte de Recife, pois não daria para ser como as outras mães, minha mãe foi levada junto comigo, passou algum tempo, e ali tinha uma médica chamada Doutora Suzana Serra referência em quadros neurológicos, que está até hoje comigo e é além de médica uma tia do coração pra mim, que fez a cirurgia da minha coluna, onde até hoje só precisei dessa, para soltar um pouco a coluna que nasceu fechada…”.
Ela ainda complementa que, após a cirurgia, pasme, saiu sorrindo sentada no colo dessa médica e complementa que, segundo sua mãe conta, ela passou por médicos que diziam que Greice não viveria mais que seis anos.
Apesar das previsões sombrias, a mãe da desenhista lutou contra a culpa e o medo, buscando garantir a melhor qualidade de vida para a filha.
“Minha mãe recebeu essa notícia com dor no coração, se culpava diariamente, chorava com medo de me perder e de que eu não pudesse vivenciar a normalidade que ela acreditava ser boa pra mim, sem entender o que significava tudo, só seguia todos os procedimentos que os médicos ali pedia, ela pensava que o erro sempre esteve nela, olhava para os céus e se perguntava o motivo de ser com ela, o medo era tanto que ela não quis, mesmo depois de um tempo, ‘furar’ minhas orelhinhas para colocar brincos, (antigamente isso era uma prática mais comum) pois achava que eu morreria, e teria que aproveitar o quanto pudesse, mas mesmo assim, no fundo, ela sentia que talvez por um descuido divino eu pudesse ficar nessa terra ainda mais tempo, que eu conseguiria, e os anos se passaram, e aí a resposta foi quando sozinha eu me segurei na cama e me levantei, coisa que jamais imaginaria que eu andasse, a resposta pra as dúvidas dela ali foram respondidas, eu iria conseguir, de alguma forma eu iria e ela lutou mais do que qualquer super-heroína poderia fazer por alguém, como fez pra mim, me levava em chuva, sol, o que fosse para os médicos e treino de marchas com moletinhas, olhava para as crianças e pensava ‘será que minha filha vai poder fazer tudo assim também?’ Até que conseguimos fisioterapia pela Restauração e também encontrei uma médica incrível, Doutora Alice Rocha, que até hoje é minha tia do coração, ela ensinou e apoiou minha mãe, assim como a Dr.ᵃ Suzana Serra, me fez evoluir, me ensinou a vida além do que era o sentido de andar e movimentar, por isso a importância da fisioterapia…”.
Com o tempo, a mãe de Greice entenderia que ela provaria ser mais resistente do que muitos esperavam.
Na escola, ela superou expectativas, avançando em seus estudos e mesmo diante do preconceito e das dificuldades enfrentadas tanto dentro quanto fora de casa.
“Com 7 anos eu já estava indo para a antiga segunda série do fundamental, minha infância foi incrível na medida que minha mãe conseguiu fornecer em quesito coisas, ao lado do meu irmão, que a ajudava desde criança, mesmo sem entender o que era obrigação, com medo de não me ter com ele, tão novo, mas tão inteligente nesse sentido na época, infelizmente mesmo com a proteção dela comigo, não consegui fugir da maldade humana na sociedade, sofri preconceito extremo dentro e fora de casa”.
Ela relata alguns casos:
“Alguns familiares utilizavam de termos horríveis pra se direcionar a mim, na escola faziam apostas para me xingar de ‘aleijada’, ‘torta’ entre outras coisas mais pesadas na frente de todo mundo, ameaças de me bater onde diziam ‘vou te bater até você ficar normal e desentortar’ e ainda assim, mesmo no fim do dia chorando escondido por não querer dizer a minha mãe para não a preocupar, eu tentava levantar, tive que entender o que era a maldade da sociedade desde os meus seis, idade que me deram como limite de vida, mas, na verdade, foi o início de entender a crueldade que eu teria que passar, pois não adiantava me esconder do mundo, hoje entendo isso e minha mãe também, proteger a gente protege, mas infelizmente não podemos controlar, e é justamente essas coisas que nos fortificam de certa forma por mais que doa… eu entendi o que era realidade quando ainda era uma criança e a greicinha não tinha culpa disso, entender era difícil, mas era preciso”.
Ela também cita um pouco da sua adolescência:
“Na adolescência foi da mesma forma, e ainda pior, pois a comparação corporal aparecia, e eu tentava discernir as realidades e não enlouquecer com o que ouvia dentro e fora do que teria que ser um lugar de amor para mim, escondia da minha mãe também, pois já via lutar tanto por mim, essa dor não era justa com ela, na adolescência eu jurava que não podia nem sequer me maquiar, usar uma roupa colada, usar meu cabelo preso ou como eu quisesse, pelo fato de que por ouvir tantas palavras ruins, acreditava que em mim ficariam horríveis, enfrentei meus piores pesadelos, comparações, medos, exclusões, mas sabia entender que aquilo me transformaria em uma pessoa mais forte, e a arte me salvou disso, fazer alguma coisa além do que era só brincar, era minha saída, não tínhamos condições de coisas caras, e eu pegava uma sacolinha de plástico e colocava lápis e papel dentro, minha mãe não pensava duas vezes em me ajudar nisso”.
“Portanto eu digo, eu sei que o medo bate e a superproteção dos pais existe, mas infelizmente se você não vira parceiro da sua criança ou adolescente PcD, você piora tudo, minha mãe, por mais que não sabia de muita coisa e com medo mesmo ela me permitia ser eu mesma, chorava horrores, mas me apoiava, e foi por ela e com ela que consegui as maiores coisas, da minha adolescência principalmente, hoje faço de tudo, independente, consigo fazer o que amo e trabalhar com o que amo, sair com amigos, me divertir, só fiz uma cirurgia na coluna e uma no pé para tentativa de correção da rotação do joelho devido a mielo”.
Hoje, Greice afirma poder dizer que conseguiu o que tanto sonhou, que era amar a si.
“Me visto como gosto, me acolho como devo e atualmente não abaixo a cabeça para absolutamente ninguém, faço palestras para explicar meu trabalho e a inclusão necessária, ajudando pessoas e famílias a saberem lidar com pessoas com deficiência da maneira correta, não para de almejar o meu futuro, pois levo a vida com grandeza, sempre vou em busca das minhas conquistas, mesmo que poucas ou muitas, o importante é não parar e o futuro me espera”.
Greice Silva expressa sua opinião sobre o Agosto Laranja, destacando a importância dessa campanha para a conscientização sobre o mielo, ou Espinha Bífida.
Ela ressalta que, embora ainda não se conheça completamente a causa da mielo, acredita-se que a deficiência de certos nutrientes possa ser um fator.
O Agosto Laranja é crucial para garantir que essa condição seja detectada a tempo e para prevenir danos maiores ao bebê durante a gestação.
Greice também critica a abordagem exagerada de alguns médicos, que podem informar os pais de maneira pessimista e sem a devida sensibilidade.
Para ela, o diagnóstico não só proporciona segurança e informações sobre o que esperar, mas também pode possibilitar intervenções precoces, como cirurgias ainda na barriga da mãe, que podem melhorar o futuro da criança em termos de movimentos motores e qualidade de vida.
Ela enfatiza que o Agosto Laranja não é apenas sobre prevenção, mas também sobre luta e ampliação da voz para apoiar famílias que enfrentam a falta de informações e o medo associado a essa condição.
Greice acredita que aumentar a visibilidade do tema, mesmo que não se alcance uma grande audiência nas redes sociais, é essencial para fazer a diferença.
Para ela, cada esforço conta, e compartilhar conhecimento pode ajudar a aliviar a carga de muitas famílias.
Como alerta Greice Silva e os especialistas médicos dessa matéria, a mielomeningocele é uma condição que pode ser melhor manejada com diagnóstico precoce e tratamento adequado.
Por isso, o Agosto Laranja nos lembra da importância da conscientização e do suporte contínuo para melhorar a qualidade de vida das pessoas afetadas e suas famílias.