Na distopia poética de Achados & Perdidos, HQ de estreia do roteirista Mario Oshiro, pessoas que se desconectam de si mesmas passam a ser tratadas como objetos esquecidos.
A narrativa sensível, com ilustrações de Dominic Amaral, mergulha no cotidiano de um mundo urbano brutal e automatizado, onde a solidão e a saúde mental são representadas em uma metáfora literal — a Síndrome dos Achados e Perdidos (SAP).
Protagonizada por Kenzo, um jovem queer e amarelo que desperta no metrô sem memória, a obra mistura humor, crítica social e romance, ao lado de Pedro, outro “perdido” rebelde que desafia o sistema.
Em tempos de retrocessos sociais e apagamento simbólico, a HQ se impõe como ato de existência e resistência.
Em entrevista ao Jornal Folk, Mario Oshiro compartilha as origens emocionais da obra, fala sobre representatividade e comenta a potência das HQs como meio narrativo, confira a seguir:
Victor Hugo Cavalcante: Primeiro, agradecemos por nos conceder essa entrevista e gostaríamos de perguntar: A HQ Achados & Perdidos transforma o apagamento em metáfora literal. Como nasceu essa ideia de tratar pessoas como objetos esquecidos, e o que ela revela sobre o mundo real?
Mario Oshiro: Primeiro, muito obrigado pelo convite, é sempre uma alegria poder falar sobre Achados & Perdidos.
Bem, a ideia da HQ não surgiu planejadamente ou com uma tese pronta na cabeça.
Ela nasceu de um acúmulo de vivências, de pequenos incômodos do cotidiano, de coisas que fui observando ao longo da vida e que, de alguma forma, começaram a se conectar.
Eu sempre fui muito atento ao que acontece ao meu redor e, ao mesmo tempo, muito afetado por esse entorno.
Principalmente circulando em São Paulo, usando transporte público, caminhando pela cidade, encarando multidões todos os dias.
Tem algo de muito brutal nesse vai e vem diário: uma multidão de rostos, cada um carregando o próprio peso, os próprios dilemas, todo mundo funcionando no automático.
Essa sensação de estar rodeado de gente e, ainda assim, se sentir só, sempre me deixou com aquela pulguinha, sabe?
E foi a partir dessa contradição que a história começou a se formar.
Pensei: se já vivemos numa sociedade que muitas vezes nos trata como números, cargos, rótulos, funções, por que não exagerar essa lógica até o absurdo e criar um mundo onde as pessoas são tratadas como objetos perdidos quando perdem o propósito da vida?
Foi daí que surgiu a SAP, Síndrome dos Achados e Perdidos, que reúne várias síndromes reais: ansiedade, depressão, fobia social, burnout.
Todas essas formas de exaustão emocional que, de alguma maneira, nos desconectam de nós mesmos, na HQ, essa desconexão vira algo quase literal.
E, nesse universo, quem se perde de si vira praticamente um objeto extraviado: é catalogado, armazenado, esquecido num depósito de gente.
A distopia da história é só um espelho torto da nossa realidade.
Achados & Perdidos usa esse universo meio absurdo para falar de algo muito real: o risco de nos apagarmos em silêncio, gradualmente, até não sabermos mais quem somos.
Victor Hugo Cavalcante: Como foi o processo emocional de colocar nas páginas questões tão íntimas, como a saúde mental, a solidão e a identidade queer-amarela, em uma trama distópica voltada ao público jovem?
Olha… foi um processo emocional intenso, mas, ao mesmo tempo, muito intuitivo.
Tem muito de mim ali, mas também tem muito do outro.
A história tem esse lugar ambíguo: é pessoal, mas é também universal.
Então, foi um processo natural, porque eram questões que já estavam em ebulição dentro de mim há um tempão.
Quando comecei a colocar no papel, as coisas simplesmente fluíram.
Foi quase como se a história já existisse e eu só precisasse escutá-la com atenção. Teve algo de libertador.
Como se, ao escrever, eu estivesse organizando o caos e transformando em narrativa aquilo que tantas vezes fica entalado.
Aliás, muita gente me pergunta se o Kenzo sou eu.
E a resposta é: não exatamente.
Ele não é um autorretrato, mas é atravessado por coisas que vivi, que ainda vivo e também por histórias, sentimentos e angústias que já ouvi de outras pessoas ao meu redor.
É como se o Kenzo fosse uma colagem de vivências, dores que não cabem numa pessoa só.
Victor Hugo Cavalcante: Em um mercado ainda carente de diversidade real, qual o significado para você lançar uma HQ com protagonismo amarelo e LGBTQIAP+, especialmente em tempos de retrocessos sociais?
Significa muita coisa.
Porque durante muito tempo eu e muita gente cresceu sem se ver nas histórias.
Passei a infância e boa parte da vida vendo protagonistas que nunca pareciam comigo, ou era um apagamento completo, ou quando aparecia alguma representatividade, era sempre estereotipada, superficial, quase caricata.
Então, lançar uma HQ com protagonismo amarelo e LGBTQIAP+ hoje, nesse cenário de retrocessos, onde se discute tanto o que pode ou não pode ser dito, sentido, vivido… é quase um ato de teimosia.
Mas é uma teimosia boa, sabe?
Tipo: “a gente tá aqui, sempre esteve, e nossas histórias também merecem espaço, profundidade, nuance”.
Não é levantar bandeira, é sobre existir com humanidade, contradições e camadas.
Acho que tem algo muito bonito quando a gente percebe que ocupar esse lugar é também abrir caminho.
Porque se um jovem leitor se reconhece no Kenzo ou no Pedro, mesmo que minimamente, isso já muda tudo.
Representatividade não resolve tudo, claro, mas aponta caminhos.
E talvez, hoje, contar essas histórias seja uma forma de dizer: a gente não vai desaparecer, pelo contrário, a gente vai contar nossas próprias versões do mundo.
Victor Hugo Cavalcante: Você já declarou que se perder é um processo necessário para se encontrar. Para você, o que foi ‘achado’ e o que foi ‘perdido’ durante o processo de criação de Achados & Perdidos — tanto no aspecto artístico quanto pessoal?
Ah, ótima pergunta!
Olha… o que foi perdido?
Bom, além de algumas horas de sono e a minha vida social durante o processo? (Risos)
Brincadeiras à parte, eu acho que o que perdi mesmo foi o medo de me expor. Porque quando você escreve uma história tão atravessada por coisas suas, dá aquele pânico de “será que vão entender?”.
Mas, gradualmente, fui perdendo essa trava.
E o que foi achado? Ah, aí a lista é boa.
Acho que achei um novo jeito de me comunicar, de transformar o que antes era só angústia ou silêncio em algo que pudesse tocar outras pessoas.
Achei uma conexão nova com o público, com leitores que me escreveram dizendo: “eu me vi aqui”.
E isso é muito bonito.
Então é isso: no meio do caos criativo, perdi alguns medos e ganhei muitas verdades.
E no fim das contas, né… talvez a gente só se encontre mesmo após se perder um pouquinho.
Victor Hugo Cavalcante: Vindo do audiovisual, como a linguagem das HQs permitiu uma nova forma de contar histórias — e o que esse meio tem de único para transmitir narrativas tão sensíveis e complexas?
São formatos diferentes, claro, mas no fim, como costumo dizer, contar uma história é contar uma história.
O que muda é o jeito de conduzir o público.
No audiovisual, você tem som, movimento, trilha, corte e tudo acontece no tempo do espectador, ou melhor, no tempo que a edição impõe.
Já na HQ, o tempo é do leitor que pode virar a página quando quiser, voltar, observar um quadro por minutos, ou passar direto por outro.
Isso muda tudo.
A HQ tem essa coisa linda de ser silenciosa e, ainda assim, ruidosa por dentro, o texto e a imagem caminham juntos, mas quem costura tudo é quem lê.
Vindo do audiovisual, foi incrível descobrir essa liberdade.
A HQ é um meio que respeita muito a inteligência e a sensibilidade de quem está do outro lado, e isso, para contar uma história sobre solidão, pertencimento, identidade… foi essencial.
Porque a interpretação fica no ar entre um quadro e outro. E aí mora muita coisa.