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Ju Camata transforma teatro em terreiro de resistência

Na pele de Mãe Anaya, a atriz-protagonista leva fé, ancestralidade e combate à intolerância religiosa ao palco do Teatro Ruth Escobar em Terreiro dos Aflitos.

Foto da cena do espetáculo Terreiro dos Aflitos.

Em maio, o público presente no Teatro Ruth Escobar — Sala Miriam Muniz, localizado em São Paulo, tem data e hora marcada para presenciar um terreiro em pleno palco teatral.

Trata-se da encenação do espetáculo Terreiros dos Aflitos, realizado pela Cia Ágata de Artes.

A peça traz à tona temas urgentes como a intolerância religiosa contra, principalmente, religiões de matriz africana, racismo e memória histórica.

O espetáculo conta com as interpretações de Ju Camata, Silvio Tadeu, Henrique Possetti, Ronaldo de Lima, Gigi Santos, Eduardo Silva, Onil Mello Júnior, Jeff Mota, Juliana Cruz, Angela Mendes, Lucimeire Petronilho e Clayse Soul.

Ju Camata, aliás, vive a personagem principal da peça, a Mãe Anaya, que herda o Terreiro dos Aflitos, espaço antes marcado por violência contra escravizados e hoje transformado em um centro de resistência e fé.

E, para saber mais da peça, conversamos nesta entrevista exclusiva com a atriz, que também assina texto e direção em companhia de Sílvio Tadeu.

Victor Hugo Cavalcante: Primeiro, agradecemos por nos conceder essa entrevista e gostaríamos de perguntar: No espetáculo Terreiros dos Aflitos, você vive Mãe Anaya, uma mulher que enfrenta o avanço do poder econômico em defesa de um espaço sagrado. Que camadas emocionais esse papel despertou em você?

Ju Camata: Agradeço também pela oportunidade de falar do maravilhoso espetáculo Terreiro dos Aflitos da Cia Ágata de Artes.

A Mãe Anaya está sendo um grande desafio emocional para mim.

É uma personagem complexa.

Preciso, com isso, ativar a multiplicidade em mim, a entrega no modo múltiplo; ou seja, compreender e buscar no meu interior o misto de emoções fortes que a Mãe Anaya vive.

E, ao mesmo tempo, a necessidade que ela tem de autocontrole, assegurada simplesmente pela sua fé.

Entender Mãe Anaya é trazer à tona uma mistura de sentimentos, pensamentos e sensações duais junto às minhas descobertas psicológicas e ir aliando, trocando tudo isso com ela para conseguir vivenciá-la.

Victor Hugo Cavalcante: O espetáculo conta com a participação especial do Ogã Mauro Me, o que traz ainda mais força e verdade aos rituais em cena. Como essa presença influenciou sua entrega e a construção da atmosfera espiritual no palco?

A participação do Ogã Mauro é maravilhosa e importante.

Traz a sabedoria dos mais velhos, idosos que nas religiões de matrizes africanas são muito respeitados.

Traz o canto, os toques de atabaque que embalam e que, automaticamente, me transportam ao Terreiro de Mãe Anaya.

O grande poder energético da música aliada às batidas ritmadas do tambor afeta as emoções de todo o elenco e do público presente, fazendo com que todos se sintam numa “gira”, a qual é um ritual da religião de Umbanda.

Victor Hugo Cavalcante: Ainda falando sobre a participação do Ogã Mauro Me, por que você acredita que é tão importante, hoje, legitimarmos a presença de lideranças religiosas de matriz africana nos espaços artísticos e culturais?

Porque são espaços que sempre foram deles também.

Porém, por puro racismo, exclusão e desrespeito, esse direito foi lhes tirado ignorantemente.

Precisamos rever com urgência tudo isso, pois temos muito a aprender com essas religiões de sabedorias ancestrais.

Victor Hugo Cavalcante: A peça denuncia a intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana. Qual a importância de tratar esse tema no teatro hoje, especialmente num país ainda marcado por preconceitos estruturais?

Por mais que tenham persistido, estes fiéis que, incansavelmente, professam sua fé dentro de suas religiões de matrizes africanas, nunca foram tão vistos e tão ouvidos como atualmente nos espaços virtuais (internet, redes sociais), onde o povo está.

E como o teatro da Cia Ágata concorda e segue a grande frase de Milton Nascimento: “todo artista tem que ir onde o povo está”, agimos com as nossas ferramentas de educação, reflexão, interação, empatia, dando mais voz e mostrando a importância da tolerância, respeito, espírito de humanidade para com estas religiões que absurdamente são mal interpretadas.

É o teatro moderno fazendo o seu papel, assim como fez no passado.

Victor Hugo Cavalcante: Inspirado na trajetória de Clara Nunes, o espetáculo mistura canto, ancestralidade e resistência. Como essa conexão com a música e a espiritualidade afro-brasileira impactou seu processo de criação?

Primeiro, sou fã de Clara Nunes desde criança, portanto estou aliando o útil ao agradável. Segundo, sou estudiosa e adepta também da religião de Umbanda.

Sendo assim, posso dizer que estas minhas experiências facilitaram muito o processo para a minha ambientação no Terreiro dos Aflitos.

Ao mesmo tempo, fizeram com que eu buscasse compreender melhor, dentro de mim, os verdadeiros sentimentos, crenças, pensamentos e questões que necessitam de revisão e melhoria na espiritualista, mulher e mãe que sou.

Isto está sendo impactante.

Victor Hugo Cavalcante: Em tempos de polarização e apagamento cultural, que mensagem você espera deixar no público com Terreiro dos Aflitos? O que o público precisa sentir ao sair do teatro?

Uma das funções do teatro é espelhar a realidade, portanto o Terreiro dos Aflitos faz isso muito bem.

Sendo também um agente de mudança social, a mensagem que desejo deixar aos espectadores é que ainda há tempo.

Tempo de agir e procurar maneiras de melhorar a sociedade, de se acolher reciprocamente, independentemente de seu credo, cor e raça.

Para mim, o público que assistir ao Terreiro dos Aflitos precisa sair com a sensação de que esteve presente não no teatro, mas num mundo particular de um Terreiro, de um ritual com fé viva.

Sair mergulhado em pensamentos de revisão sobre suas crenças negativas a respeito da religião de matriz africana e tendo o interesse de saber mais sobre esta cultura rica, sábia, secular e que nos agrega valores.

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