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Mila e Camila: Faces de uma escritora combatente

Descubra as duas faces de Mila Nascimento, que encontrou na literatura uma forma de denunciar e combater a misoginia e machismo de cada dia.

Foto da escritora e entrevistada Mila Nascimento.

No dia 14 de julho, a escritora e médica Mila Nascimento esteve presente na Feira Criativa Mente, na Casa Pompeia, em São Paulo.

Além de apresentar uma performance poética, Mila também autografou exemplares de seu novo livro e conduziu uma roda de conversa sobre saúde mental, focando especificamente na experiência das mulheres vítimas de violência doméstica.

É justamente essa misoginia e violência que Mila, ou Camila, combate em seu livro Poemas para antes do banho, durante o café e depois do abandono.

Composto por trinta e um poemas viscerais, a obra aborda, sob a ótica do cotidiano, o processo de (re)construção da subjetividade de um eu-lírico feminino violentado pelo machismo e pela misoginia.

Nesta entrevista exclusiva, você poderá conhecer mais sobre a autora, suas inspirações, lutas e muito mais.

Victor Hugo Cavalcante: Primeiro, é um prazer recebê-la no Jornal Folk, e gostaria de começar com a seguinte pergunta: O que a inspirou a escrever Poemas para antes do banho, durante o café e depois do abandono?

Mila Nascimento: Olá! Victor, primeiramente quero agradecer pela oportunidade de falar um pouco mais do meu livro.

Poemas para antes do banho, durante o café e depois do abandono é um grito de denúncia contra a misoginia que violenta mulheres todos os dias.

Sou sobrevivente de violência doméstica grave e escrever foi o caminho que encontrei para ser ouvida!

Foi onde encontrei colo e respeito.

Victor Hugo Cavalcante: Como foi o processo de selecionar os trinta e um poemas que compõem a coletânea?

Ah! Não houve um processo de seleção.

Fui escrevendo durante aproximadamente seis meses… respondendo com poesia a inúmeros fatos que aconteciam na minha vida pessoal.

E então, a Editora Patuá abriu chamada de originais para a Flip 2023 e eu pensei: “vou juntar esses versos e mandar”.

Victor Hugo Cavalcante: Em seu livro, você utiliza uma linguagem que explora cheiros, sabores e luzes do cotidiano. Como você desenvolveu esse estilo quase sinestésico e qual é o seu objetivo ao usá-lo?

Meu livro é um desabafo.

E acredito que para desabafar com alguém, a gente precisa se sentir à vontade.

Então, quis conversar com o leitor e trazer para ele a minha atmosfera de acolhimento, como se estivéssemos na sala da minha casa conversando.

Amo luz amarela, bolo de fubá e sempre tenho algum incenso queimando ou aromatizador em casa.

Explorei as sensações que me fazem bem no dia a dia para que o leitor se sentisse confortável para me ouvir com seus olhos.

Victor Hugo Cavalcante: Pode nos contar sobre a importância da professora Eunice em sua trajetória literária?

Puxa!

A “prô” Eunice foi minha professora de português na sexta série.

No ano de 1991, durante a tradicional feira de ciências, ela propôs que todos escrevêssemos um livro.

Gostei tanto da ideia que escrevi dois.

Quando ela leu, me disse: “Você precisa publicar o que escreve! Não desista nunca, pois leva muito jeito com as palavras. Seus textos me prenderam, me emocionaram! Esse é o papel da arte!”.

As palavras dela nunca mais saíram da minha cabeça.

Ouvir isso de alguém que, para mim, representava uma autoridade na escrita, foi muito significativo.

Victor Hugo Cavalcante: De que maneira você acredita que sua poesia pode impactar e ressoar com outras mulheres que passaram por experiências similares?

Infelizmente as histórias de abusos e violências são muito comuns.

Acontecem todos os dias e em todas as classes sociais, mas ninguém acredita que isso se passe nas “casas das famílias de comercial de margarina” como era a minha.

Eu me lembro que em roda de conversa sobre violência doméstica, fui questionada sobre como uma MÉDICA poderia ter passado por aquilo tudo?

Respondi que, antes de ser médica, branca, cis, heterossexual e toda essa parafernália de privilégios que tenho, eu era uma mulher.

E pelo simples fato de ser mulher estava sujeita a ser violentada, uma vez que vivemos em uma sociedade patriarcal e falocêntrica.

A minha escrita representa a voz de todas as mulheres.

Victor Hugo Cavalcante: Como você concilia sua carreira como médica com sua paixão pela escrita?

Escrevo nos plantões, no banheiro, antes de dormir…

Confesso que às vezes queria ter uns cinco clones (risos), mas como isso não é possível, tento adequar meu tempo, mas nunca deixo para depois o que aparece com vontade para ser escrito.

Tento respeitar meu processo de escrita e não deixo para depois.

Victor Hugo Cavalcante: A sua formação e prática na medicina influenciam de alguma forma a sua escrita poética e a abordagem dos temas que você aborda em seus livros, por quê?

Victor Hugo, tudo que escrevo foi vivido, é tudo verdade!

Minha mãe dizia que nasci escritora e me tornei médica.

Sou muito grata ao fato de ter como instrumento de trabalho o tesouro mais precioso das pessoas: a Vida.

Lidar com a morte e a vulnerabilidade humana, nos amolece, nos afeta.

E é esse afeto que transmuto em poesia.

Victor Hugo Cavalcante: Quais são os desafios e as recompensas de atuar voluntariamente com pessoas em situação de vulnerabilidade social?

Eu sempre fiz trabalho voluntário.

Me lembro que, quando estava no ensino médio, eu visitava um asilo no bairro onde eu morava e lia poesia aos idosos de lá.

Lembro ainda de uma vez que terminei um namoro e embrulhei todos os bichos de pelúcia que ganhei do ex para distribuir nos faróis de São Paulo para crianças de rua no 12 de outubro.

O término do namoro virou sorriso da molecada!

Sabe, eu realmente acredito que não pode haver bem-estar se esse não for coletivo.

A gente é um bicho que vive em bando!

Não tem como não ajudar o outro!

Trocar, oferecer o que a gente tem em abundância para quem tem algo em falta, nós fomos feitos para isso.

Quando atendo voluntariamente, volto tão repleta de histórias que, muitas vezes, meus problemas ficam miúdos e me sinto feliz!

Defendo que fazer trabalho voluntário forma caráter.

Victor Hugo Cavalcante: Como foi para você receber o reconhecimento no 57º FEMUP e como isso impactou sua carreira literária?

O FEMUP foi um divisor de águas!

Conheci um monte de autor incrível, fiz muitas amizades, descobri o universo da literatura.

Ganhar a Barriguda, o qual é o jeito que chamam o Troféu Natividade, foi uma espécie de iniciação ao universo da escrita na qualidade de autora profissional.

Sou e serei sempre muito grata ao FEMUP.

Foi esse festival que me botou no mundo como escritora.

Victor Hugo Cavalcante: Em sua opinião, como a escrita pode funcionar como um mecanismo de denúncia, cura e catarse, especialmente para mulheres vítimas de violência?

Sabe, Victor, quando eu tinha nove anos, viajei de férias para o Maranhão com minha avó Aldenora.

Passei três meses de férias longe de casa e minha mãe me escreveu uma carta.

Poucos meses atrás, depois do falecimento da Dona Lívia, eu reli a carta.

Era tanto desabafo!

Minha mãe, em meio às angústias e à solidão de não ter com quem conversar, ESCREVEU.

Dividiu comigo tanta dor, tanto desconforto!

Eu só tinha nove anos e talvez não tenha entendido na época o que aquela carta representava.

Escrever é colocar com as mãos o que nossa boca não consegue falar ou o que não querem ouvir.

Escrever é um jeito de deixar gravada a nossa fala, o nosso grito.

Ninguém cala uma mulher que escreve, sabe, Victor.

Escrever é um bom jeito de não sucumbir e de permanecer.

Quando tive minha coluna quebrada, prometi duas coisas para mim mesma: proteger o coração dos meus filhos e nunca permitir que nenhuma outra mulher passe pelo que passei.

Tem dado certo e a escrita tem servido para cumprir minhas duas promessas.

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