Novembro é marcado como o Mês da Consciência Negra, uma oportunidade de celebrar e refletir sobre a cultura, história e contribuições do povo negro.
Nesse contexto, a literatura se destaca como uma ferramenta essencial de transformação e conscientização.
Dentro deste cenário de celebração e reflexão, a literatura se posiciona como um poderoso veículo para o despertar de consciências e a mudança social, abordando temas que desafiam a discriminação e promovem o reconhecimento das lutas históricas da população negra.
Independentemente do gênero literário, ela provoca reflexões profundas.
A literatura negra, em especial, tem um papel poderoso na luta contra o racismo e na promoção da representatividade, e, ao trazer à tona histórias e vivências da comunidade negra, esses livros ampliam vozes historicamente silenciadas e promovem uma nova compreensão sobre cultura e resistência.
No entanto, a importância da literatura negra vai além da simples representação, ela carrega um legado que remonta há séculos de opressão e luta, e sua evolução ao longo da história do Brasil reflete as transformações sociais e culturais que marcam a sociedade atual.
Mas como a literatura negra surgiu e como ela vem evoluindo no Brasil?
Embora a designação “literatura negra” tenha se tornado proeminente nos estudos literários e culturais a partir da década de 1970, a produção literária escrita por autores negros e com protagonistas negros remonta bem antes dessa época.
Para entender melhor essa trajetória, é essencial conhecer as figuras pioneiras que, mesmo diante das adversidades de seu tempo, desafiaram o status quo e deram início a uma produção literária que hoje ressoa com força no Brasil.
Uma figura emblemática dessa literatura é Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de Despejo, seu “diário de favelada” publicado em 1960, no qual retrata o cotidiano de uma mulher negra e pobre vivendo na favela do Canindé, em São Paulo.
Embora Carolina Maria de Jesus tenha sido uma das vozes mais impactantes de sua época, ela não foi a única a destacar a realidade da população negra em sua escrita.
Outros autores, como Maria Firmina dos Reis, também ocuparam um espaço importante na construção da literatura negra, sendo redescobertos e valorizados ao longo das décadas.
Mas, afinal, qual a diferença entre a literatura negra e outros estilos literários?
A literatura negra é produzida por autoras e autores negros ou descendentes, destacando protagonistas e a cultura negra com profundos elementos históricos e étnicos.
Entender essa distinção é fundamental porque revela não apenas o conteúdo da obra, mas também a perspectiva única que ela oferece.
A literatura negra não é apenas uma categoria literária, mas um movimento cultural e político que visa reafirmar a identidade e a humanidade de um povo e embora seja voltada principalmente para leitores negros, nem toda obra de um autor negro se encaixa nessa categoria; o clássico Dom Casmurro, por exemplo, de Machado de Assis, não é considerado parte da literatura negra ou afrodescendente.
O impacto da literatura na luta antirracista
Para entendermos melhor o impacto da literatura negra na conscientização social e no fortalecimento da identidade, a escritora Veronica Botelho compartilhou suas percepções e reflexões sobre seu papel como autor e sobre o diálogo que suas obras despertam no público em relação ao empoderamento e à representatividade nas suas obras:
“A literatura, enquanto arte em palavras, reflete a vida, a sociedade e a cultura. É uma ferramenta que nos permite compreender e nos compreendermos como pessoas em toda a sua diversidade. Por isso, acredito que não deveria ser definida pela cor de quem a escreve, mas sim pela riqueza de contextos, vozes e histórias que ela carrega. No entanto, há uma lacuna histórica: por muito tempo, autorias negras não tiveram espaço ou visibilidade. Assim, a expressão ‘literatura negra’ é essencial neste momento de reparação, como um marco de resistência, afirmação e ampliação de perspectivas”.
Ainda assim, Veronica deseja que essa classificação seja transitória, uma ponte para algo maior.
Segundo a escritora, o risco de utilizar a expressão “literatura negra” é que ela seja vista como um subgênero, quando deveria ser reconhecida como parte de um todo que celebra a pluralidade da experiência humana.
Afinal, ninguém se refere à “literatura branca” ao mencionar Tolstoi, Flaubert ou Joyce e insistir em categorizar pela cor limita o que a literatura pode oferecer como uma janela para o entendimento humano em sua totalidade.
“Quem, como eu, escreve o que hoje é classificado como ‘literatura negra’ contribui para enriquecer a compreensão do mundo, trazendo histórias antes silenciadas e revelando novas perspectivas. Espero que, um dia, cheguemos a um momento em que nossa literatura seja lida sem rótulos, como parte de uma narrativa maior, onde todas as vozes tenham o mesmo valor e sejam igualmente ouvidas. Porque, no fundo, a literatura é, e sempre será, uma celebração da nossa capacidade de ampliar horizontes, conectar experiências e abraçar a complexidade da condição humana”, finaliza a escritora.
A autora da série não sequencial intitulado As Estações, comenta ainda sobre seu segundo livro, Inverno, que apresenta uma reflexão crua sobre os relacionamentos que moldam a personalidade a partir de uma família inter-racial, e como ele ajuda a fortalecer a identidade negra e o combate ao racismo:
“Estamos vivendo um momento histórico em que, finalmente, o racismo é discutido abertamente. Por muitos anos, comprou-se e vendeu-se a ideia de que ele não existia, de que vivíamos em um país multicultural onde todas as pessoas conviviam pacificamente, uma ilusão construída às custas de anos de silenciamento. Hoje, reconhecemos que essa ideia foi sustentada por enganos e violências, e os dados estão aí para demonstrar: ainda somos minoria nos espaços de poder, somos a maioria nos presídios e continuamos a ser alvos constantes de violência letal”.
Ainda para Botelho, escrever histórias que exponham essa realidade de maneira crua é a forma que ela encontrou de iluminar o que muitos ainda tentam ignorar.
“Acredito que a única maneira de resolver um problema é, primeiro, termos consciência dele. Essa tomada de consciência nos fortalece, nos faz entender que não podemos mais aceitar migalhas ou abaixar a cabeça para um sistema que insistiu, e ainda insiste, em nos invisibilizar”.
“Sem nos vitimizar, mas reafirmando nossa humanidade, a literatura nos permite construir pontes entre dor e resistência, entre invisibilidade e protagonismo e Inverno busca ser um reflexo dessa luta: um espaço para reconhecer a realidade, reforçar a dignidade e a força das identidades negras, e compartilhar conhecimentos sobre uma história que ainda é pouco reconhecida”.
Veronica Botelho também comenta suas percepções da resposta dos leitores, principalmente negros, em relação ao empoderamento e à representatividade nas suas obras:
“Tenho recebido mensagens de pessoas negras que compartilham como enxergaram nas minhas histórias um reflexo de suas vivências e uma reafirmação de suas identidades. Essas respostas, muitas vezes carregadas de sentimentos intensos, mostram como a literatura pode ser um espaço de resistência e fortalecimento. No entanto, desejo que os meus livros não se limitem a pessoas negras, pois só assim será possível construir pontes entre diferentes grupos, promovendo o diálogo e a transformação social. Estamos em um momento de transição, onde a raiva é legítima e necessária, mas também precisamos buscar caminhos de cura e diálogo para avançar como sociedade”.
Ao ouvir a experiência dos próprios autores, conseguimos compreender de forma mais profunda como suas obras reverberam na sociedade, especialmente no contexto da luta antirracista e no fortalecimento das novas gerações.
Além dos escritores, editoras e coletivos literários negros também desempenham um papel vital, pois, ao investir em publicações de literatura negra, eles ajudam a expandir o acesso a essas vozes, porém, o caminho não é fácil já que enfrentam desafios significativos, especialmente financeiros, que comprometem a sustentabilidade e o alcance dessas publicações.
No entanto, a persistência de editoras como a Dandara Editora demonstra a força do movimento literário negro, mesmo diante das dificuldades.
Joselicio Junior, mais conhecido como Juninho, diretor editorial da Dandara Editora, comenta sobre os desafios e as conquistas enfrentadas ao promover essas publicações:
“A Dandara Editora é resultado direto das políticas de Ações Afirmativas no Brasil, como a política de cotas nas universidades, que vem formando uma nova geração de intelectuais negras e negros. Temos nos especializado na produção de livros a partir de pesquisas acadêmicas como dissertações de mestrado, teses de doutorado, estudos de grupos de pesquisas e estamos sentindo a cada dia uma ampliação da procura de novos pesquisadores interessados em publicar e um público crescente e interessado nessas publicações, isso nos anima muito a seguir com o projeto”.
Apesar dessa alta procura, Juninho nos revela o maior desafio para as editoras independentes:
“O maior desafio sempre é o financeiro, produzir livro não é barato e temos poucos incentivos no país para fortalecer a cadeia do livro e permitir que ele se torne, inclusive, mais barato para o consumidor final. Para uma editora independente como nós, esse desafio é ainda maior”.
Literatura negra como recurso psicológico e educativo
Outro ponto essencial da literatura negra é a sua contribuição para o empoderamento psicológico dos jovens negros, especialmente em espaços educacionais, já que além do impacto social e cultural, também desempenha um papel crucial no fortalecimento da identidade pessoal e no enfrentamento das questões emocionais e psicológicas enfrentadas pela população negra, especialmente em um contexto educacional.
Conforme destaca o psicólogo clínico Vinicius Dias, a literatura negra pode ser um recurso poderoso para a saúde mental e para a construção de uma identidade mais fortalecida, especialmente entre crianças e adolescentes.
“A literatura auxilia no processo educacional, mas também de compartilhamentos e criação de imaginários e sentidos. Auxilia também em impactos positivos em crianças, na formação de uma consciência através de personagens diversos, para além de uma única história que durante séculos as pessoas negras foram condicionadas. Acaba que, através da criação de imaginários diversos, se age também numa educação antirracista, pois esta criança terá um repertório baseado em sua humanidade negra e não na desumanização”.
Neste processo, a literatura negra vai além de suas páginas, tocando os corações e as mentes de leitores de diferentes origens, contribuindo para a formação de uma sociedade mais justa e empática.
A leitura de obras antirracistas também fomenta a construção de empatia entre leitores de todas as origens, promovendo a reflexão sobre questões raciais.
Portanto, a literatura negra, mais do que uma expressão artística, representa uma força coletiva que, ao longo do tempo, tem contribuído diretamente para a desconstrução das desigualdades e para a construção de uma nova consciência social.
Em suas análises, especialistas em estudos literários, acadêmicos e pesquisadores refletem sobre o papel transformador da literatura negra na sociedade contemporânea.
Para além do resgate histórico, esses estudiosos enfatizam como a literatura negra, ao tratar das questões raciais, fortalece a luta antirracista e promove uma sociedade mais empática e compreensiva.
Juliana Piauí, coordenadora do projeto Pequenos Leitores na Roda Educativa, uma Organização da Sociedade Civil (OSC) formada por educadores e profissionais de diversas áreas que acreditam no potencial da escola pública, avalia a evolução desse tipo de literatura no país, bem como sua importância para a sociedade atual:
“A literatura de autoria de pessoas negras no Brasil tem tido mais visibilidade e espaço no mercado editorial, dando lugar às histórias e perspectivas das populações negras que durante muito tempo foram marginalizadas ou estigmatizadas. É uma conquista do movimento social que há muito tempo luta por essa maior participação na produção intelectual e que conseguiu avanços importantes com a Lei das Cotas e a própria 10.639/2003. Há uma valorização dessa produção literária, que agora ocupa um espaço central nas escolas e nas discussões culturais. Não só isso, temos mais autores negros escrevendo e publicando sobre questões e temáticas que não se referem exclusivamente ao racismo, mas que refletem a perspectiva da população negra e indígena sobre temas diversos que afetam diretamente a todos”.
Mas, como livros de temática racial influenciam a visão de mundo dos leitores?
Para Juliana, inicialmente, é preciso fazer uma distinção entre obras sobre o racismo como estrutura social e histórica de exclusão sistemática das pessoas negras, essas são produções de historiadores, cientistas sociais e de outras áreas fundamentais para a compreensão do processo de construção do quadro que temos hoje.
Ela explica que essas obras podem e devem estar nas escolas, para o estudo de professores e de estudantes, mas elas não excluem a necessidade de termos obras literárias que tragam personagens negras, em posições que não sejam de subalternidade ou vinculadas a algum tipo de estereótipo no qual muitas vezes são colocadas, seja pelo destaque de características físicas de maneira caricata ou pela fixação de um lugar social de subserviência a personagens brancos.
Ainda para Juliana, apesar de o acesso ao mercado editorial ter sido dificultado justamente pelo processo do racismo, nós hoje temos uma série de autoras e autores negros com uma produção literária intensa e diversa e que precisam estar acessíveis a todos os leitores.
Afinal, constituem a matriz cultural brasileira, que durante muito tempo foi excessivamente marcada pela vertente europeia que se impôs pela colonização e seguiu sendo nossa referência quase exclusiva na nossa indústria cultural.
Juliana Piauí comenta que o projeto, uma parceria da Roda Educativa com a FTD Educação, apoia municípios a constituir a formação de leitores desde a Educação Infantil, inserindo a leitura diária na rotina de crianças de 4 e 5 anos.
“E acreditamos ser importante que, desde essa idade, o acesso a um acervo, que seja de fato representativo, seja garantido. É um direito garantido em lei: as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 determinam a obrigatoriedade de conteúdos sobre história e cultura afro-brasileira e indígena, e para as crianças negras e indígenas, é o direito de se sentir representado, e ajuda a combater um sentimento de inferioridade gerado pela exclusão histórica, mostrando que suas culturas e histórias são valiosas e dignas de serem conhecidas”.
Já para as crianças brancas, Juliana comenta que essas obras contribuem para o exercício da alteridade, promovendo a empatia e ajudando a desconstruir preconceitos e fantasias de superioridade racial.
“Mas, para uma formação leitora antirracista, precisamos de mais do que acervo. Precisamos de professores que compreendam a dimensão do racismo, saibam reconhecê-lo em sala de aula, e a leitura abre essa possibilidade de o preconceito racial, que muitas vezes as crianças reproduzem da sociedade adulta, venha à tona e possa ser discutido. Mas não só isso. É uma questão de ampliação de repertório, de expansão de perspectiva, as crianças só ganham com isso”, finaliza a coordenadora do Projeto Pequenos Leitores.
Ao ser perguntada se acredita que a literatura antirracista está ajudando a promover mais empatia e entendimento entre diferentes origens, Juliana é enfática ao dizer que: “a literatura antirracista tem desempenhado um papel fundamental na promoção de empatia e entendimento entre pessoas de diferentes origens. Ao expor as realidades e histórias das populações negras e indígenas, essas obras oferecem aos leitores uma oportunidade de compreender as lutas e os desafios enfrentados por esses grupos. Isso reduz a ignorância sobre a diversidade racial e humaniza as experiências: tanto de quem historicamente foi marginalizado como de quem marginalizou. Ou seja, aquelas pessoas que naturalizaram as estruturas raciais, que se beneficiaram desse tipo de estrutura e que praticam atitudes racistas podem se rever e se humanizar. Afinal, a convivência com esse tipo de preceito de superioridade e dominação também desumaniza a pessoa que perpetua o racismo ou que é conivente com ele”.
Portanto, a literatura negra e antirracista não é apenas uma forma de expressão artística, mas uma ferramenta vital para a construção de uma sociedade mais igualitária e respeitosa.
Ela transforma, educa e oferece um ponto de partida para mudanças sociais significativas.
Iniciativas de editoras independentes, projetos educacionais e movimentos sociais têm sido essenciais para ampliar o alcance dessa literatura.
A valorização e disseminação de obras negras é, portanto, um ato político de resistência e uma celebração da diversidade que define a identidade brasileira.
Cada história, personagem e autor contribui para moldar uma nova consciência mais justa, plural e humana.