Na véspera do Dia dos Povos Indígenas, celebrado em 19 de abril, é essencial refletir sobre a importância da cultura e das tradições indígenas na identidade brasileira.
Mais do que uma data comemorativa, o dia representa uma oportunidade de reconhecer a riqueza dos povos originários, sua resistência histórica e a luta por espaço e respeito.
Entre os instrumentos de valorização da cultura indígena, a arte se destaca como poderosa ferramenta de expressão.
Por meio de diversas manifestações, indígenas rompem estereótipos e ocupam espaços antes negados.
Essas expressões preservam tradições ancestrais e dialogam com a contemporaneidade, mostrando que a cultura indígena está viva e em constante transformação.
Neste contexto, a arte torna-se um ato político, uma forma de resistência e reafirmação da identidade.
Mas quais desafios ainda existem para esses artistas? E como a arte pode contribuir na luta por reconhecimento e direitos?
Por muito tempo, a mídia retratou os indígenas de forma estereotipada, abordando-os apenas em contextos de conflito, marginalização ou como obstáculos ao “progresso”.
Suas vozes raramente eram ouvidas, e suas pautas, muitas vezes, eram narradas por não indígenas, reforçando a invisibilidade e a falta de representatividade.
Nas últimas décadas, coletivos e artistas indígenas vêm mudando esse cenário, promovendo uma narrativa mais autêntica e plural.
Conheça abaixo alguns artistas indígenas que usam a arte para fortalecer a resistência e a cultura de seus povos:
Solymon: O grito indígena em forma de Heavy Metal

A região norte tem se destacado como um dos principais centros de heavy metal no Brasil.
Além de sua relevância histórica, há muito que de lá estão surgindo algumas das bandas mais expressivas do metal contemporâneo, sem contar os grandes festivais e eventos que acontecem anualmente na região.
Capitaneada pela vocalista Mônica Paz, a banda Solymon, natural de Manaus, na Amazônia, é, certamente, uma das mais interessantes que você vai conhecer.
Formada em 2023, além de Mônica, a Solymon reúne alguns dos músicos mais experientes da cena amazonense e faz um trabalho bastante particular ao propor o encontro do heavy metal com a riqueza histórica e mitológica da região norte, trazendo à tona lendas, povos e a grandiosidade da floresta em suas composições.
Mônica nos conta sobre o principal desafio enfrentado pela banda de heavy metal com identidade indígena no cenário musical atual:
“Dificuldade cultural mesmo, pois só tem interesse por esses assuntos de povos originários quem tem embasamento histórico e se interessa por conteúdos reais e verdadeiros… já que hoje, seja no cenário heavy metal ou em qualquer outro segmento musical, a maioria das letras está banalizada e supérflua. Então, começa aí a dificuldade”.
Ela também nos conta como podemos incentivar mais pessoas a conhecerem e valorizarem a identidade indígena contemporânea através da arte:
“Tirando a venda da ignorância com uma educação histórica e aceitando o povo indígena como os primeiros habitantes do Brasil que assim o é, e o abraçando com a consanguinidade em nossas veias, antepassados e raízes… E assim a arte passará a ser só uma consequência maravilhosa de se entender as histórias nativas”.
Binário Armada: A representatividade indígena através das artes plásticas

Binário Armada é um artista brasileiro nascido em 1979, em Fortaleza, e radicado em São Paulo desde 2006.
Indígena autodeclarado, seu trabalho reflete um resgate ancestral diante do apagamento histórico vivido por povos originários.
Com uma estética contemporânea, Armada cria personagens e cenários oníricos que evocam a espiritualidade indígena, os vínculos com a terra e as histórias contadas por sua mãe e tias.
Entre seus personagens destacam-se os Aba-ocas (“Homem-casa”) e os Encantados, figuras místicas com traços antropozoomórficos.
Também músico, transita entre o som e o visual em criações ritualísticas que invocam elementos da natureza.
Seu universo é construído a partir de camadas sobre papel: colagens de livros antigos, selos, cadernos escolares e materiais reciclados.
Em seguida, usa aquarela, guache e nanquim para criar as imagens, sem deixar espaços em branco.
Armada desenvolveu ainda a Îagüarype, uma escrita assêmica inspirada em civilizações antigas, e a técnica da rolhagravura, em que esculpe carimbos em rolhas de vinho para formar padrões, especialmente de flora.
Suas obras, ricas em detalhes, bordados e até impressões digitais, vêm ganhando destaque em feiras e exposições de arte no Brasil.
Ao ser questionado sobre os desafios enfrentados por artistas indígenas para conquistar espaço, Binário Armada é direto:
“O mercado da arte tem pontes muito estreitas e, no fim, essas pontes são poucas. É preciso que ele compreenda quem são esses indígenas, onde vivem, em que contextos vivem. Temos indígenas em contexto urbano, aldeado e isolado. E, dentro disso, indígenas que conhecem suas etnias e outros que, como eu, viveram um apagamento histórico”.
Esse “não-lugar” citado por Binário reflete a situação de muitos artistas que, embora se reconheçam como indígenas e possuam uma forte conexão ancestral, cresceram afastados de suas origens devido à violência colonial e da omissão do Estado.
Ele reforça:
“Muitos ainda enxergam a arte indígena apenas como artesanato. Mas um colar, uma pintura corporal, uma arte plumária, tudo isso é arte. Eu, por exemplo, vejo como arte contemporânea, porque há uma cosmovisão profunda ali”.
Binário ainda cita outros nomes de artistas indígenas contemporâneos que estão quebrando essas barreiras, como Ziel Karapotó, Andrey Guaianá Zignnatto, Daiara Tukano, Mora Tupinambá, Jaider Esbel, Tamikuã Txihi, Coletivo Mahku, Denilson Baniwa e Uýra Sodoma, além de nomes internacionais ligados a povos como os Ainu do Japão.
“Temos artistas do norte ao sul do país, com estilos diversos: grafismo contemporâneo, pintura figurativa, simbólica…, mas ainda falta espaço, falta conhecimento, falta interesse real. Muitas vezes, o mercado não sabe como se aproximar”.
Apesar das dificuldades, ele vê sinais de esperança: feiras como a SP-Arte e a Fargo, em Goiás, têm aberto portas para artistas indígenas, oferecendo novas oportunidades de visibilidade e comercialização.
“O que falta é um estudo mais profundo. Não como uma pesquisa de campo folclórica, como o Mário de Andrade fazia, mas uma escuta atenta, com curadores realmente dispostos a conhecer esses artistas e suas histórias”.
E conclui:
“Quando você dá voz ao artista indígena para falar sobre o próprio trabalho, as pessoas ouvem. Elas se interessam. E é assim que a valorização começa”.
A escrita como território indígena: o trabalho de T△I e os desafios de publicar arte amazônida

O ato de histórias sempre foi uma ferramenta poderosa para a preservação cultural e o fortalecimento das cosmovisões indígenas, seja ela por meio da literatura, das artes visuais, do audiovisual ou nas histórias em quadrinhos.
T△I, bacharel em Moda e Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, artivista visual, comunicadora e professora originária de Mairi (Belém, Pará), utiliza as histórias em quadrinhos e a arte visual como formas de resgate da ancestralidade e de diálogo político com o presente.
Seu trabalho parte da representação sobre identidades amazônidas, tendo como protagonistas a retomada e conscientização indígena em contexto urbano, destacando conexões com o território e os Encantados, povoando suas ilustrações e histórias em quadrinhos com referências das cosmovisões da região.
Sua trajetória inclui colaborações com empresas como Grendha, Companhia das Letras, Amazônia de Pé e Megafone Ativismo.
Seu quadrinho Causos de visagens para crianças maluvidas já foi indicado ao 35º troféu HQ MIX e ao 39º troféu Angelo Agostini e Onde habita o medo foi indicado ao 2º Prêmio Mapinguari de Quadrinhos.
Apesar da força e originalidade de suas obras, T△I destaca os desafios enfrentados por escritores indígenas no Brasil.
Para ela, um dos principais obstáculos está no desinteresse e acesso às editoras, levando muitos autores a optarem pela publicação independente.
No entanto, essa escolha traz outra barreira: a dificuldade de distribuir os livros amplamente no país.
“Além disso, muitos autores residem em espaços sem acesso de qualidade à internet ou que não têm conhecimento de marketing em redes sociais, o que torna ainda mais complicada a divulgação sem o suporte de uma editora”, explica.
Outro ponto crítico citado por T△I é a ausência de letramento racial nas editoras, contribuindo para comportamentos coloniais e experiências de publicação marcadas por desrespeito e racismo.
Ela também aponta a contradição de um mercado onde autores não-indígenas, especialmente do eixo sul-sudeste, escrevem sobre povos indígenas sem garantir o mesmo espaço para escritores indígenas contarem suas próprias histórias.
Para reverter esse cenário e incentivar a valorização da identidade indígena contemporânea por meio da arte, a autora sugere ações estruturais e educativas.
“Precisamos de mais editais e acesso às escolas públicas e particulares para que nossos livros cheguem nesses espaços e possam ser utilizados pelos professores em suas turmas”, afirma.
Ela lembra que o material didático ainda representa os povos indígenas de maneira racista e que falta formação adequada aos educadores.
T△I também defende a presença ativa de autores indígenas em livrarias, feiras literárias, galerias, museus, produções audiovisuais e outros espaços culturais.
Para isso, é essencial que curadores e organizadores busquem esses artistas, promovam oportunidades justas e contratem profissionais indígenas em funções de curadoria e produção.
“Existem artistas e profissionais indígenas em todos os setores, mas ainda nos é escassa a oportunidade de mostrar e divulgar nossos trabalhos nacional e internacionalmente”, diz.
E conclui com um chamado à consciência coletiva:
“É essencial que pessoas não indígenas aprendam a sair de suas bolhas e conheçam sobre a luta indígena e sobre a nossa existência contemporânea. Brasil é território indígena, não existe luta antirracista sem a presença de povos indígenas”.
Como vimos ao longo da matéria, a arte indígena, em suas mais diversas formas, é um instrumento de resistência, identidade e transformação social.
O fortalecimento dessa representatividade passa pela valorização de artistas indígenas e pelo reconhecimento de suas narrativas, que não apenas resgatam a ancestralidade, mas também constroem um futuro mais plural e inclusivo.
Ao apoiar e divulgar essas vozes, damos mais um passo rumo à construção de uma sociedade que respeita e celebra a diversidade cultural do Brasil.