Autor de romances, contos e minicontos, Whisner Fraga é um dos nomes mais consistentes da literatura brasileira contemporânea.
O autor nasceu em Ituiutaba, cidade do interior mineiro, e atualmente mora na cidade de São Paulo.
Sua formação acadêmica é singular e profícua: Engenharia Mecânica (UFU), 1994, mestrado em Engenharia Mecânica (UFU), 1997, doutorado em Engenharia Mecânica (USP), 2003, pedagogia (UFSCar), 2014, e Tecnólogo em Marketing Digital (Uninter), 2023.
O mineiro estreou no universo literário em 1997 com Seres e Sombras.
Sua obra seguinte, Coreografia de Danados, de 2002, foi publicada por meio do Prêmio Galo Branco.
Desde então, lançou mais de uma dezena de livros, com destaque para o finalista do Prêmio Jabuti, em 2023, Usufruto de Demônios (Oficios Terrestres).
Whisner participou também de antologias importantes como a Geração zero zero: fricções em rede (Lingua Geral), organizada por Nelson de Oliveira, que mapeou os escritores brasileiros mais emblemáticos surgidos na primeira década do século XXI e Os cem menores contos brasileiros do século, capitaneada por Marcelino Freire.
No exterior, teve alguns de seus contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe por meio da Revista Literária Pessoa.
Além da escrita, o autor se conecta com o público também por meio do canal no YouTube, Acontece Nos Livros, que tem mais de 16 mil inscritos e dezenas de vídeos publicados.
Ainda no espaço virtual, o autor faz resenha de livros, dá dicas e também conversa com outros autores.
Em Fomes inaugurais (Editora Sinete), seu novo livro, ele mergulha na invisibilidade das pessoas em situação de rua por meio de minicontos breves, líricos e brutais.
Com contos curtos e cenas indigestas, a obra sai do lugar-comum ao dar voz a quem está deitado no papelão.
Nesse contexto, violências e indignidades veladas ficam expostas e escancaram as hipocrisias da sociedade atual.
Nesta entrevista ao Jornal Folk, o escritor fala sobre o processo criativo, os limites da linguagem e a urgência de aproximar literatura e realidade.
Victor Hugo Cavalcante: Primeiro, agradecemos por nos conceder essa entrevista e gostaríamos de perguntar: ao longo de mais de 25 anos de escrita, seu trabalho passou por diferentes estilos e prêmios. Como você enxerga hoje a evolução do seu olhar literário sobre temas sociais e humanos?
Whisner Fraga: Eu que agradeço as perguntas, Victor.
Eu sempre tratei, em minhas obras, de temas correntes, mas, no início, eu o fazia de forma mais tímida, encoberta por metáforas, por outras figuras de linguagem.
Acho que o livro mais explicitamente social que já publiquei é este mais recente, As Fomes Inaugurais, que fala das pessoas em situação de rua, com suas histórias invisíveis e invisibilizadas.
O meu olhar literário, portanto, veio depurando essas tramas para torná-las, de uma forma lírica, acessíveis ao público leitor.
O que faço para tornar esses assuntos dignos daquilo que chamamos de arte é dar uma roupagem poética, mas sem, claro, perder de vista todo esse peso trágico que a condição humana carrega.
Victor Hugo Cavalcante: A origem do livro As Fomes Inaugurais partiu de um episódio de indignação pessoal. Como foi o processo de transformar essa revolta em literatura, especialmente em contos tão breves, mas tão densos?
Sim, um grupo de WhatsApp do condomínio em que moro tratava da situação de um casal em situação de rua, que ocupava (ainda ocupa) a calçada em frente ao prédio.
Mas o modo com que lidavam com o tema não era nada cordial, ao contrário, era muito duro.
Eu achei que era hora de me posicionar sobre aquilo e o fiz escrevendo este livro de contos.
Minicontos, melhor classificando.
O objetivo principal era mostrar, por meio de minha literatura, de meu estilo, que os dois são seres humanos, portadores, portanto, disso que nomeamos, como dito na primeira pergunta, de condição humana.
Era preciso humanizá-los, porque eles estavam sendo vistos como objetos, como nada, e eu me senti impelido a escrever sobre isso.
Conversei com várias pessoas em situação de rua, assisti a filmes, li sobre o assunto, pesquisei incansavelmente até perceber que estava pronto para escrever o livro.
Victor Hugo Cavalcante: Os minicontos de As Fomes Inaugurais parecem se entrelaçar como peças de um quebra-cabeça social. Como foi o desafio de construir esse enredo fragmentado, mas que revela um panorama tão coeso e impactante da realidade das ruas?
Eu fiz o projeto inicial: queria que o livro fosse de minicontos, mas que personagens passeassem de uma narrativa para outra, uma peregrinação como essas pessoas em situação de rua fazem todos os dias.
Quis, também, que o livro pudesse ser lido como um volume de contos ou uma novela fragmentada, em que personagens, tramas, situações e linguagem fossem o elo de união entre os textos.
Era o que eu tinha em mente: trechos, situações, frases, recortes, um esqueleto do que eu pretendia que fosse a obra.
Assim, comecei a escrever.
Dediquei-me quase que exclusivamente a estes minicontos durante mais de dois meses — este foi o processo de escrita, sem contar o planejamento.
Para cada conto escrito, cem revisões ou mais, em um processo difícil, angustiante.
É a depuração da palavra.
Eu não tinha a obrigação de retratar fielmente o que acontece nas ruas, para isso eu precisaria, talvez, morar por um tempo na rua, viver essa realidade e, ainda assim, não conseguiria abarcar nem um milésimo da vida dessas pessoas.
Assim, usei diversos gêneros narrativos, o realismo mágico, o romantismo, o naturalismo, para contar histórias, sem a obrigação da fidelidade, é o meu ponto de vista.
É a minha forma de humanizar, de trazer para perto situações tão extremas vividas por estas pessoas.
Victor Hugo Cavalcante: Ainda sobre o livro As Fomes Inaugurais, na página 34, você traz uma reflexão intensa e provocadora sobre os termos usados para se referir a pessoas em situação de rua. Na sua opinião, qual é o papel da linguagem na perpetuação das desigualdades sociais?
A linguagem pode ser uma grande armadilha, como pode ser motivo de discussão, por isso o escritor deve conhecê-la tão bem.
Só assim para criar uma obra ficcional.
É o que busco na arte: a transgressão, assim, quando essa questão de nomear algo se torna mais importante, em alguns casos, do que este próprio algo, há algo fora de lugar.
E eu vejo essa preocupação por parte da esquerda, de renomear as coisas, de tratar as coisas por algo que realmente as defina.
Isso é importante para a academia, pois essas etimologias ganham significado na discussão teórica, no estudo, embora de difícil acesso, em todos os sentidos.
Na prática, no dia a dia das pessoas em situação de rua, importa é a comida, importa é a luta cotidiana pela sobrevivência, a empatia, a solidariedade, a fuga da violência.
Foi o que quis demonstrar no conto, que as coisas ganham importância conforme o contexto em que estão inseridas.
Victor Hugo Cavalcante: Ainda no trecho citado anteriormente, você menciona o incômodo com os “eufemismos burgueses” e a “esquerda pensante”. Essa crítica aponta para um certo distanciamento entre discurso e ação? De que forma isso é abordado no restante da obra?
É exatamente isso: o distanciamento entre teoria e prática, que sempre houve, em alguma medida, mas que me parece estar se aprofundando.
O livro inteiro trata disso: enquanto pessoas discutem o destino de outras em grupos de WhatsApp, a existência continua pulsando lá fora, continua e continuará a acontecer.
E é sobre essa vida acontecendo que gostaria de falar, sempre, por ser esse pulsar que me encanta, que me interessa, que me move.
Victor Hugo Cavalcante: Você afirma que As Fomes Inaugurais representa tudo o que queria realizar literariamente. Em que momento da sua trajetória percebeu que os minicontos seriam o melhor formato para isso?
É apenas a minha visão, é a forma com que eu percebi que funcionaria para mim.
Outro escritor talvez achasse melhor um romance, ou uma novela, ou mesmo contos mais longos.
Eu acho que todos têm cada vez menos tempo para ler um livro e eu sempre pensei que uma forma de atingir um público maior fosse escrevendo textos mais curtos, mas sem deixar de lado a profundidade com que o assunto é tratado, o lirismo: forma e conteúdo.
Eu intercalo livros mais longos, romances, com contos mais compridos.
Mas, recentemente, tenho escrito muito minicontos, microcontos.
Este é o meu terceiro livro consecutivo com este formato, mas não sei se escreverei em breve um quarto livro de minicontos.
Não é nada que se escreva no intervalo de outro livro, não é algo menor, é uma obra a que atribuo valor como qualquer outra que eu tenha escrito.
Agora, sobre formatos, não existe uma regra: se o escritor quer fazer um recorte, contar um detalhe, recorre ao conto.
Se quer mais personagens, mais tramas, mais caminhos, opta pelo romance.
Tudo depende deste projeto inicial a que me referi nas primeiras perguntas.