Formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a advogada e escritora Flávia Camargo, que escreve desde a infância, estreou na literatura com Diferenças em Comum (Editora Giostri, 2010), e, agora, pela primeira vez, se aventura na escrita epistolar, refletindo sobre a construção da maternidade a partir de um diálogo direto e afetivo com seus filhos.
Em Enquanto Vocês Crescem — As cartas de amor de uma mãe, a autora transforma experiências íntimas em reflexões universais, escritas com delicadeza e honestidade para seus filhos.
A obra, com prefácio do psicanalista Thiago Queiroz, reúne uma década de vivências que revelam o poder da palavra como afeto, memória e cura.
Com sensibilidade, a autora busca não somente deixar um presente para seus filhos, uma lembrança afetiva de suas infâncias, mas também se comunicar com outras mães e famílias que vivem emoções semelhantes.
Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Folk, Flavia fala sobre o processo de escrita, o luto, a imprevisibilidade da vida e a maternidade como escola de afeto e transformação.
Victor Hugo Cavalcante: Primeiro, agradecemos por nos conceder essa entrevista e gostaríamos de perguntar: Como sua formação em Direito e sua experiência como escritora em diferentes formatos influenciam sua abordagem na escrita de Enquanto Vocês Crescem?
Flavia Camargo: A formação acadêmica e o exercício profissional na área do Direito me mantiveram em contato com a escrita analítica e o olhar observador, que não pode deixar passar nenhum ponto que mereça ser explorado para fundamentar a tese que estamos defendendo.
E no momento em que decidi documentar a minha vida ao lado dos meus filhos, a tese que eu pretendia comprovar com este exercício era a de que eles seriam os colaboradores da minha evolução.
Fui movida por um propósito de generosidade, inspirada pelas mães que me precederam e cujos exemplos me convenceram de que eu estaria me beneficiando ao escolher me colocar a de pessoas que dependessem dos meus cuidados.
Dessa forma, busco em cada pequena situação extrair os presentes que venho ganhando da convivência com eles.
Os diferentes formatos de livros que escrevi antes também me deram ferramentas para contar sobre esses momentos felizes, mesmo os que foram vividos em meio a dificuldades, com uma linguagem poética e sensível, que toca o coração.
Victor Hugo Cavalcante: O livro mencionado anteriormente trata de uma jornada de amor, luto e autoconhecimento. Como você acredita que a escrita de cartas contribui para o processo de cura e reflexão da maternidade, especialmente em momentos de perda?
As cartas me ajudaram a me conectar com o Igor, meu primeiro filho, que faleceu logo após nascer.
A impossibilidade de falar e ser ouvido pela pessoa que amamos nos machuca, porque nosso sentimento não encontra um meio de se consumar.
Quando não podemos alcançar o outro usando o toque, nem a voz, as palavras no papel cumprem a função de externalizar aquilo que não queremos guardar só para a gente, trazendo a sensação de que estamos conseguindo fazer o outro saber o quanto é importante.
E além desse resultado terapêutico para a dor, percebi que as cartas também me ajudaram a lidar com os conflitos surgidos na tarefa de educar.
Quando nos deparamos com maus comportamentos da criança, experimentamos emoções desconfortáveis.
E relatar em cartas aqueles desentendimentos de maneira afetuosa, tentando suavizar seus efeitos, me deu recursos para compreender e contornar os problemas que apareciam.
Victor Hugo Cavalcante: Enquanto Vocês Crescem é um título que traz um sentimento de passagem e de transformação. O que essa escolha representa para você, tanto como mãe quanto escritora, e como ela reflete o tema da obra?
O título do livro só surgiu depois que ele estava pronto.
A princípio eu pretendia entregar as cartas somente para os meus filhos, quando eles fossem mais velhos.
Mas depois percebi que o conteúdo delas seria interessante para todas as pessoas, que podem identificar suas experiências com as minhas palavras.
Quando resolvi reunir tudo numa obra, achei que esse título era o que melhor representava que se trata de uma narrativa que vai sendo construída ao mesmo tempo que se desenvolvem as vidas que ela está registrando.
De certa forma, estou comprometida em seguir contando uma história que eu mesma só conhecerei à medida que ela acontecer, mas tenho no meu controle a certeza de que, independentemente dos episódios que ocorram, eles serão assimilados positivamente, como alegrias a serem compartilhadas, ou desafios que usaremos para lutar e aprender juntos.
Victor Hugo Cavalcante: No prefácio, o psicanalista Thiago Queiroz fala sobre a criação consciente e o aprendizado mútuo entre pais e filhos. De que maneira você vê a maternidade como uma oportunidade de aprendizado constante, tanto para a mãe quanto para os filhos?
A maternidade (e a paternidade) é um campo experimental riquíssimo para quem tem o objetivo de mergulhar nesta aventura com o peito aberto.
As crianças conhecem menos sobre as regras sociais, o funcionamento do mundo, e nesse ponto elas aprendem conosco.
Mas elas também trazem a inocência e a imaginação, possuem mentes virgens e férteis, são curiosas, entusiasmadas e criativas.
Nesse sentido, nossos filhos nos mostram sutilezas que nos ensinam a sermos mais humildes, serenos e empáticos.
A criação consciente tem a proposta de que os cuidadores não se coloquem numa posição de superiores para fazer valer suas vontades.
Quando dou espaço para que meus filhos manifestem seus desejos e pensamentos, permito que eles aprendam na prática sobre respeito e conciliação, desenvolvam habilidades de articulação e transigência, criando um vínculo afetivo mais sólido e saudável.
Victor Hugo Cavalcante: No trecho de Enquanto Vocês Crescem em que descreve a chegada de Luisa e a surpresa de sua gravidez, você menciona a “imprevisibilidade” da maternidade. Como você vê o papel da surpresa e da adaptação nas suas experiências como mãe, e como isso reflete a ideia de que a maternidade é um processo de constante transformação?
Algo que notei bem cedo foi que viver é imprevisível.
Mas, se por acaso alguém não passou por circunstâncias que o levassem a perceber isso até se tornar pai ou mãe, os filhos vão se encarregar da tarefa de levar a tal constatação.
Pois os filhos são, naturalmente, as pessoas sobre as quais alimentamos sonhos e, por esta razão, têm o maior potencial de nos mostrar que ninguém pode atender por completo as nossas expectativas.
Eles entram em nossos caminhos com suas próprias naturezas e essências, solicitando serem auxiliados para cumprir suas missões.
Não determinamos quais serão suas preferências, nem quanto tempo permanecerão neste plano.
É o convite mais bonito que alguém pode receber, de estar disponível para amparar e servir ao próximo, o que exige desprendimento para aceitarmos o desígnio de forças maiores, sempre prontos para dar o nosso melhor para alguém que não nos pertence.
Mas aquilo que nos pertencerá, por meio dos valores que adquirimos com a sua passagem, é o grande tesouro que compensa tudo.