Crédito: Julieta Bacchin
O espetáculo Otelo, o Outro estreia no dia 18 de agosto, sexta-feira, na Sala Jardel Filho do Centro Cultural São Paulo, às 20 horas, com ingressos gratuitos.
Encenada por Miguel Rocha e com dramaturgia de Israel Neto, Joaci Pereira Furtado e Kenan Bernardes, a montagem é uma releitura do clássico Otelo, o mouro de Veneza, de William Shakespeare (1564-1616).
Partindo do protagonista da tragédia shakespeariana, a peça é uma potente reflexão poética sobre a identidade do sujeito negro em diáspora. Otelo, o Outro é, pois, uma viagem interna, um mergulho em si em que o personagem vai se estranhando.
Delírio, sonho ou pesadelo, essa viagem ou esse mergulho faz a personagem de Shakespeare encarar outros dois “Otelos” que o habitam e que o guiam num caminho tão intrincado quanto doloroso, que passa necessariamente por Desdêmona, mas percorre outras sendas, explorando ambiguidades e aporias da memória e da identidade afrodiaspóricas, marcadas pelo deslocamento social e cultural.
Ao Otelo shakespeariano não resta outra saída a não ser o suicídio, depois que ele toma ciência do ardil que o levou ao assassinato de Desdêmona, insuflado pela cizânia que Iago plantara com “evidências” que, aos olhos do protagonista, tornaram-se inegáveis.
Esse núcleo do enredo da célebre tragédia é o ponto de partida para a sua releitura em Otelo, o Outro, entendendo que a razão de todo o conflito do protagonista nasce de sua condição de estrangeiro, isto é, de alguém socialmente sempre estranho.
Hábil na arte da guerra, o Otelo de Shakespeare é facilmente enredado em intrigas típicas da sociedade de corte europeia que o levam ao feminicídio e ao suicídio, ciente de que nela não há lugar para ele.
Na releitura brasileira, tal deslocamento não é a mera inadequação do indivíduo moralmente fraco e emocionalmente suscetível, inepto na percepção das armadilhas da inveja e da ambição, mas o confronto desigual entre duas culturas inconciliáveis, ainda que interdependentes.
Otelo, o Outro representa um homem inventado como “negro” pelo olhar ocidental, um sujeito que se submete a esse olhar, tentando se integrar por inteiro, “de corpo e alma”, como se diz.
O casamento com Desdêmona, uma mulher branca da elite, é a metáfora dessa entrega incondicional a um sistema de valores e a comportamentos que o estigmatizam como “o mouro”, ao mesmo tempo, que se serve dele.
A cegueira do ciúme é uma alegoria dessa apaixonada adesão.
Sua corporeidade, portanto, é o índice e o limite que o separa irrevogável e irreversivelmente desse “Ocidente” que ele deseja literalmente incorporar.
A releitura, porém, fala de uma consciência dividida que, aos poucos, mas não sem muita dor, vai percebendo a origem do conflito que a fustiga.
Ela reflete também sobre os mecanismos que recalcam a ancestralidade inscrita no corpo, repugnada pela sociedade à qual o “mouro” aspira, caminhando para o desfecho trágico da morte, mas não da morte do corpo.
Nessa releitura, Otelo encontra seus outros “eus”, cujas falas foram extraídas de histórias reais de homens pretos brasileiros contemporâneos ou dos discursos do racismo difuso, às vezes mais, às vezes menos sutil, mas de qualquer forma típica de nossa sociedade.
Assim, sem filtros e sem superego, um alterego de Otelo diz verdades incômodas, eventualmente cínicas, quase sempre terríveis, dramatizando a perversidade da adesão inconsciente do homem negro ao jogo que o inventa como “negro”.
Menos contundente, o outro alterego é ponderado: ele chama à razão e sugere uma resiliência tática, uma estratégia de sobrevivência diante de algo mais forte, talvez insuperável, perpassada pela solidão.
“Eles são projeções da sua própria mente para refletir sobre as ações e atitudes, sobre seu espaço no mundo”, afirma Miguel Rocha.
A estética da encenação passa pela composição de imagens, das ações e movimentos do corpo no espaço, buscando ampliar o discurso pela dramaturgia da cena, traços recorrentes nos trabalhos assinados pelo encenador.
“O enredo traça uma ponte entre o drama da personagem original com a experiência de negros e negras herdeiros de uma África desbotada no tecido fino da memória, que percorrem um longo caminho interno na busca por se lembrar daquilo que a história e a cultura insistem em apagar, numa busca por ‘tornarem-se negros’”, comenta o ator e idealizador do projeto, Kenan Bernardes.
Para tanto, a dramaturgia explora os conflitos psicossociais e propõe reflexões acerca da constituição afrodiaspórica contemporânea.
Nessa montagem, orientada, sobretudo, pelo pensamento de Frantz Fanon, Otelo se expõe à ruptura com o discurso que o inventa exatamente como “homem negro”, ao mesmo tempo que ele recusa qualquer forma de tutela de sua consciência, inclusive aquela que lhe nega até o direito de odiar.
Sem dar respostas, já que esse espetáculo procura mais provocar do que solucionar, Otelo, o Outro explora as contradições da própria consciência negra numa sociedade como a brasileira contemporânea.
Sociedade, esta, hegemonizada pelo capitalismo neoliberal e pela indústria cultural pós-moderna, que sempre aspira ao “novo” sem enfrentar e superar o legado do escravismo colonial e de seu autoritarismo estruturante.