Há quem diga que o Transtorno do Espectro Autista (TEA) se tornou moda e, com a moda, vem um grande investimento e um complexo industrial.
É comum vermos este posicionamento entre pessoas não ligadas à área e, em alguns casos, até entre aquelas envolvidas nisso.
Mas, antes de cunhar termos e bater carimbos, é preciso analisar o que há por detrás do movimento em torno do TEA e entender o momento em que estamos vivendo.
Primeiramente, é preciso lembrar que o crescimento do número de crianças diagnosticadas com TEA não é exclusivo do Brasil.
Na verdade, o que está acontecendo, assim como em todo mundo, é um avanço da ciência e, com ela, do entendimento do transtorno.
E neste sentido, ainda temos muito o que aprender.
Nos EUA, por exemplo, o último relatório do CDC (Centers for Disease Control and Prevention), denominado Relatório Comunitário de 2023 sobre Autismo, retrata que uma a cada 36 crianças aos oito anos é diagnosticada com TEA, o que significa 2,8% da população.
Em 2000, era um caso de autismo a cada 150 crianças observadas.
O salto está relacionado justamente à questão de que há mais profissionais preparados para diagnosticar o TEA e que os pais estão mais atentos aos sinais, em outras palavras, existe um maior entendimento sobre o que é o transtorno. Porém, este é apenas o princípio do caminho.
No Brasil, ainda não há dados reais sobre o percentual da população com autismo.
As estimativas oficiais dão conta que o transtorno está presente em dois milhões de brasileiros.
As estatísticas, porém, podem ser conservadoras, pois muitos não recebem o diagnóstico correto na infância e atingem a vida adulta sem saber que tem TEA.
Se aplicarmos o percentual estimado nos EUA na população brasileira, o número pode chegar a quase seis milhões de pessoas.
No Censo Demográfico 2022 o tema foi incluído pela primeira vez, mas os resultados ainda não foram divulgados pelo IBGE.
O aumento do número de casos diagnosticados é expressivo e não há, na mesma magnitude, um crescimento de terapeutas qualificados para atender à demanda crescente.
É comum vermos pais reclamando que a clínica X ou Y tem uma grande rotatividade de profissionais ou está sem determinada especialidade necessária para o atendimento ABA.
Para quem não está familiarizado, a Análise do Comportamento Aplicada, termo traduzido para o português, é a terapia indicada para crianças neurodiversas, pois se concentra em analisar e modificar comportamentos, promovendo sua aprendizagem e autonomia.
Ao mesmo tempo, sempre que existe uma discrepância entre oferta e demanda, o resultado é pressão dos preços, o que encarece o tratamento e acaba limitando o número de clínicas que aceitam trabalhar com plano de saúde.
Aí vem outra realidade: pais que não tem condições de arcar com clínicas particulares, e, obviamente, raríssimos podem pagar mensalidades que chegam a R$ 45 mil, acabam se submetendo a tratamentos que não são ideias, realizados por profissionais que não estão capacitados para aplicar a ABA corretamente.
Muitos são estagiários supervisionados por recém-formados, que já exigem salários elevados, e o resultado é a baixa evolução das crianças e frustração dos pais.
Aí vem os questionamentos se esta terapia é a mais indicada para os neurodiversos.
A saída encontrada por muitos pais tem sido a judicialização para obrigar que o plano de saúde pague pelo tratamento ideal para seus filhos.
Segundo pesquisa desenvolvida Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), até novembro de 2023, as operadoras associadas responsáveis pelo cuidado de três milhões de beneficiários afirmam que o custo com terapias de TEA e Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD) superou 9% do custo médico, enquanto os tratamentos oncológicos ficaram em 8,7%.
Como resultado, recentes notícias mostram os planos simplesmente comunicando a seus clientes que não vão mais atendê-los.
Imagine: do dia para a noite seu filho fica sem tratamento, que já não é dos melhores, e perde a rotina?
As operadoras alegam prejuízos acumulados, resultando em altos índices de reajustes que não foram suficientes para reverter a situação e a lei permite que contratos coletivos por adesão sejam rescindidos de forma unilateral!
Para quem depende do SUS, a situação é ainda pior.
A terapia que precisa ser intensiva é aplicada em raras seções quando há profissional disponível.
As consultas aos neurologistas também são espaçadas com grande fila de espera e não existem tantos neuropediatras especializados no tema para a avaliação das intervenções adequadas.
Os especialistas cobram consultas caras, em torno de R$ 1.000,00, e os responsáveis pela criança, que tem certa condição, acabam buscando economizar para ter um tratamento minimamente adequado.
No campo público, foram identificados serviços sendo criados especificamente para os autistas.
Na esfera federal, especificamente no Ministério da Saúde, houve a destinação, em 2023, de R$ 540 milhões de reais para implantação de 120 Núcleos Especializados em Autismo integrados aos CER.
Apesar das cifras milionárias, o valor é insuficiente para atender as famílias que precisam das especialidades e ficam anos e anos na fila de espera, perdendo uma importante fase de intervenção na criança que faria toda a diferença futura.
Outro mercado que se abriu foi o educacional, com o lançamento de cursos para a formação de profissionais e orientação dos pais.
E esta indústria tem crescido a cada dia, assim como marcas têm usado o “rótulo autismo” como estratégia de marketing para venda de brinquedos, vitaminas e até turismo, já que os pais de crianças neurodiversas costumam evitar sair por terem medo de não conseguirem controlar os seus filhos que, muitas vezes, ficam perdidos em espaços novos e diferentes.
O diagnóstico precoce e as intervenções corretas na primeira infância fazem toda a diferença para a evolução da criança e pode melhorar diagnósticos como surdez, visão e o nível de suporte de autismo.
Mas o momento é de adaptação dos tratamentos e estudos.
Nossas crianças, hoje, infelizmente ainda são cobaias e não há fiscalização para saber se as clínicas realmente oferecem o tratamento adequado com os profissionais qualificados.
O sistema público está em adaptação, enquanto o privado tem lucrado em cima da busca dos pais pelo melhor para seus filhos.
O autismo não virou moda, ninguém deseja que seu filho seja neurodiverso.
Mas ao ter a certeza que sim, os pais buscam o melhor e ao, tatear para que seu filho evolua e tenha menos necessidade de suporte e mais oportunidades futuras, se deparam com uma indústria cara e ainda com poucos resultados efetivos.
Sobre o autor
Valmir de Souza é COO da Biomob, startup especializada em soluções de acessibilidade e consultoria para projetos sociais.