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Entrevista Folk: Vall Santos une música à memória em single

Artista quilombola comenta em entrevista exclusiva sobre sua trajetória quilombola, música, poesia e a força da ancestralidade em sua arte.

Foto do artista entrevistado.

Crédito da foto principal: Gabriel Cerqueira

Vall Santos é um cantor e compositor quilombola, da comunidade de Lagoa Grande, Bahia, que traz em suas músicas a riqueza de suas raízes tradicionais e o encontro com a modernidade.

Com uma identidade marcada pela fusão de linguagens artísticas, também como poeta, transita entre o sertão e o mar, paisagens urbanas e rurais.

Estes contrastes junto a influências como Martinho da Vila, Gilberto Gil e Ney Matogrosso encontraram terra fértil em Vall, nascido em uma família musicalmente inspiradora.

Até a atualidade, seguem animando festas e ritos com o talento nato observado entre pessoas originárias das culturas de transmissão oral no Brasil.

As canções de Vall Santos referenciam a figuras históricas, às festas populares, à memória coletiva, ancestralidade, senso de identidade, pertencimento, à beleza da biodiversidade brasileira em seu território e todas as dualidades da peculiar vivência enraizada em sua herança imaterial, experimentada pelo autor logo cedo e em primeira pessoa.

Em 2023, o artista lançou seu 1º single, Princesa do Sertão, uma homenagem à Feira de Santana, sua terra natal.

Já em 2025, apresentou a faixa Coisa Boa, seu 2º single, no qual explorou ritmos afro-caribenhos e o pop latino.

Agora, o cantor lançou mais um single, intitulado Amar é Pedagógico, onde faz referência à reconciliação com a própria imagem, algo que o próprio vivenciou já na fase adulta, a partir da lembrança afetuosa de sua mãe brincando com seus cachinhos enquanto o ninava em seu colo.

E nessa entrevista exclusiva você vai saber mais sobre a nova música, influências culturais e muito mais.

Victor Hugo Cavalcante: Primeiro, agradecemos por nos conceder essa entrevista e gostaríamos de perguntar: crescendo na comunidade quilombola de Lagoa Grande, quais experiências foram decisivas para moldar sua identidade artística e a maneira como você vê a música como ferramenta cultural?

Vall Santos: Cresci em um ambiente muito musical.

Meu pai tinha vários instrumentos musicais em casa: pandeiro, sanfona, violão, berimbau, triângulo, timbau, clarineta.

Ele se juntava com os amigos para animar as festas da comunidade.

Nesses momentos eles também compunham algumas canções.

Eu gostava muito de observá-los, e eles acabaram virando as minhas maiores referências.

Desejava muito cantar, compor e tocar como eles.

Para mim era ótimo conviver com os artistas que eu admirava, ou seja, meu pai e os amigos deles.

Além disso, a vida na roça era sempre embalada por música, todas as atividades da roça tinham uma cadência, que mais pareciam uma canção.

Seja na bata do feijão, no plantio do milho, na casa de farinha, na biatagem do feijão, na cavação das covas para o plantio.

Os pés batendo no chão para plantar o feijão, os paus batentes durante a bata do feijão, o rodo torrando a farinha, o descascar da mandioca, a peneira tirando a palha do feijão, a quebra do Licuri na pedra, tudo parecia marcar um ritmo cadenciado, que mais parecia uma canção.

Além de tudo, nas festas populares, a exemplo do São João, São Pedro, São Cosme e São Damião, as novenas em homenagem a São José.

As festas, sejam elas profanas ou religiosas eram marcadas por muitas músicas, o Dia da Criança também era uma celebração.

Nessa data meu pai montava um bumba-meu-boi e saía pela comunidade fantasiados e tocando e cantando.

Sem contar as excursões para a praia em que meu pai era o responsável por ir no fundo do ônibus puxando o sambão.

Acredito que todas essas experiências foram importantes para a minha moldar a minha identidade artística e influenciaram como enxergo a música como uma ferramenta cultural.

Victor Hugo Cavalcante: Seus trabalhos transitam entre o sertão e o mar, e entre ritmos tradicionais e contemporâneos. Como essa fusão de influências contribui para sua voz única na música brasileira?

Nasci numa cidade situada na região agreste, entre a zona da mata e o sertão, também sou originário de uma comunidade rural quilombola.

Aos 19 anos passei a residir na cidade em busca de trabalho.

Após um tempo passei a morar em Salvador, a qual é uma cidade litorânea, daí passei por diversos espaços de formações e exerci diferentes profissões.

Isso tudo me fez ter contato com realidades distintas.

Todas essas vivências são fundamentais para a minha formação enquanto artista, pois acabei bebendo de diversas fontes, sejam elas mais tradicionais ou mais modernas.

Por isso, não consigo me colocar numa caixinha, no que se refere ao meu estilo musical.

Vou do samba de roda ao baião; do ijexá ao pop; nas minhas canções existem referências ao sertão e ao mar, ao tradicional e ao moderno; do popular ao erudito.

Outro ponto, eu gosto de tratar das questões existenciais e das dualidades da vida, e isso um reflexo da diversidade dos lugares onde vivi.

Costumo dizer que a matéria-prima da minha arte são as experiências que eu já vivenciei.

Os lugares com os quais tenho uma relação de afeto, a exemplo de Salvador e da minha cidade, Feira de Santana, em especial a minha comunidade são a fonte maior da minha inspiração.

Victor Hugo Cavalcante: Além da música, você também atua como poeta e escritor. De que maneira essas diferentes linguagens artísticas dialogam entre si e fortalecem sua conexão com suas raízes e histórias de vida?

A escrita tem sido uma importante fonte de autoconhecimento para mim.

Acho ótimo escrever um poema e depois ler, para em seguida perceber que ali tem um recado para mim mesmo.

Minha escrita é livre e acredito que isso é uma maneira fecunda para expressão do meu inconsciente.

É nesse ponto que a escrita e a música se conectam, porque a música é o que tem de mais valioso na minha vida.

Não consigo mais me imaginar sem a música.

Na escrita eu me desnudo, aí vem a música, a qual é uma forma de dar vida para o que era somente palavras que estavam no papel.

Assim, a música é uma forma de dar vida à minha escrita e através dela eu não escrevo somente, mas dou vida às palavras.

Victor Hugo Cavalcante: de que forma a memória do cuidado materno de sua mãe se transformou em inspiração para Amar é Pedagógico e sua mensagem sobre empoderamento negro?

Cresci ouvindo as pessoas dizerem que meu cabelo era ruim, que parecia coco de passarinho.

Quando criança, era sofrível cortar o cabelo, pois doía muito.

Dei graças a Deus quando inventaram a máquina de cortar cabelo, daí por diante era só passar a máquina zero.

Porém, o sofrimento continuou.

Quando meu cabelo ia crescendo, formavam umas bolotinhas.

Eu andava sempre com uma pata no bolso para pentear o cabelo e não deixar que ele ficasse enroladinho.

Chegou a pandemia e resolvi que não iria à barbearia cortar o cabelo, para não ser contaminado com o vírus da Covid-19.

Então o meu cabelo começou a crescer e eu pude sentir novamente a sua textura.

Acho que deixar o meu cabelo crescer fez com que inconscientemente eu recordasse da época que eu era criança e colocava a cabeça no colo da minha mãe e ela brincava com as bolotinhas do meu cabelo e eu adormecia no colo dela.

Acredito que isso fez reavivar essa memória em mim, até então esquecida.

Poder recordar dessa cena me fez lembrar do quanto eu era amado.

Isso me empoderou de tal forma que consegui me posicionar e me tornar um cantor.

E hoje estou aqui concedendo uma entrevista na condição de cantor.

Acho que se não fosse pelo amor da minha mãe, aqui materializado naquele cafuné gostoso, eu não estaria aqui com vocês hoje.

Victor Hugo Cavalcante: O samba-canção aborda a reconciliação com a própria imagem e identidade. Como você acredita que a música pode atuar como instrumento de autoestima e transformação social?

O amor é a melhor vacina que todos precisamos para seguirmos firmes em busca daquilo que acreditamos.

A vida é feita de dois lados, tem coisas boas e coisas ruins.

E se tem uma coisa boa na vida é a sensação de amar e ser amado.

A lembrança de que um dia foi amado e também de que amou alguém é muito empedrador.

Fortalece a nossa autoestima e faz com que sejamos resilientes para lidar com as adversidades da vida.

Victor Hugo Cavalcante: A capa do single traz referências ao cafuné e à ancestralidade. Como a parceria com Don Guto ajudou a traduzir visualmente a sensibilidade e a mensagem do seu novo trabalho?

Dom Guto é um artista muito talentoso de lá da minha cidade.

Ele é o responsável pela ilustração do meu primeiro livro que será lançado em dezembro.

O livro é voltado para o público infanto-juvenil e fala sobre a minha infância na comunidade de quilombola de Lagoa Grande.

Quando pensei em escrever o livro, eu desejava que o ilustrador fosse um homem negro e que também compartilhasse de vivências parecidas com a minha.

Então convidei Dom Guto que é um homem negro, que também é da minha cidade e que é um artista muito sensível.

O convite encaixou direitinho, pois precisava de alguém que tivesse a sensibilidade de captar as sutilezas que o meu livro carrega e que traduzisse as nuances em imagens.

Assim, a capa do single é uma das cenas do meu livro Um Domingo na Roça que será lançado pela Editora Vecchio e que é a minha estreia como escritor.

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