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Thaís Campolina e o estado febril da desobediência feminina

Em estado febril, Thaís Campolina une ciência, ancestralidade e poesia para explorar a desobediência feminina como força criadora.

Foto da entrevistada do dia.

Thaís Campolina nasceu em 1989, na cidade de Divinópolis, interior de Minas Gerais.

Chegou a morar durante dez anos em Belo Horizonte, capital do estado, depois voltou para a cidade natal, onde vive até hoje.

A jovem divide o gentílico com outra poeta, Adélia Prado, uma das mais celebradas escritoras brasileiras e influência inegável para quem nasce em Minas Gerais, e em especial, no mesmo município que o dela. 

É pós-graduada em Escrita e Criação pela Unifor, e trabalha nessa área.

Atua como redatora, resenhista, facilitadora de oficinas e ainda realiza trabalhos editoriais como leitura crítica e acompanhamento de projetos literários.

Também é mediadora de leitura nos clubes Cidade Solitária, Leia Mulheres Divinópolis e Casa das Poetas, além de curadora da página Bafo de Poesia.

Estreou na literatura em 2020 com o e-book Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija (2020), disponível na Amazon.

Noano seguinte, lança-se na poesia com eu investigo qualquer coisa sem registro (Crivo Editorial, 2021).

Nos anos seguintes, publicou três plaquetes (livros em formato menor e com custo de produção reduzido): noticiosas (2023), línguas soltas (Primata, 2024) e frigideira (Tato Literário, 2024).

A ideia de escrever estado febril surgiu em 2021 a partir do minicurso Dos avessos da genealogia: avós, silêncio, memória e transmissão, ministrado por Danielle Magalhães e Flávia Trocoli.

O processo seguiu e teve ainda maior vazão criativa durante o Curso Livre de Preparação de Escritores da Casa das Rosas (CLIPE), em 2023.

Em novembro de 2024, o livro foi colocado em pré-venda pelo site de financiamento coletivo Benfeitoria com apoio da Macabéa Edições.

Em poucos dias, bateu as metas estipuladas e chegou ao final do período, em 14 de dezembro, com mais de 100% da meta alcançada e com 139 pessoas aderindo à campanha.

Para a poeta, essa foi uma experiência editorial inédita.

Agora, você poderá descobrir mais da escritora e do livro estado febril nesta entrevista exclusiva.

Victor Hugo Cavalcante: Primeiro, agradecemos por nos conceder essa entrevista e gostaríamos de perguntar: O livro estado febril entrelaça o cosmos às memórias mais íntimas da infância e da ancestralidade feminina. Como surgiu essa decisão de unir o sideral ao doméstico em um mesmo corpo poético?

Thaís Campolina: Essa estranha união surgiu da minha vontade de voltar às origens.

Todo o processo criativo desse livro envolveu olhar para trás para tentar entender poeticamente quem eu sou e quem eu quero ser como poeta e também como pessoa.

Sendo assim, se tornou inevitável abordar as memórias da infância e os laços familiares.

Só que qualquer personagem é mais do que o que sua família quis que ele fosse, geneticamente ou não.

Crescer é muitas vezes negar os ideais daqueles que vieram antes de nós, porque a gente descobriu, ao ter contato com o mundo que nos cerca, que somos pessoas diferentes e, por isso, escolhemos outros caminhos e ideais para desbravar.

Crescer então é descobrir, desobedecer e inventar algo a partir disso.

Acho que o poema big bang, que abre a seção a composição das estrelas, exemplifica bem as minhas intenções ao fazer esse mix: ele fala sobre a origem da desobediência desse eu-lírico a partir da poesia e do contato com o conhecimento científico ali simbolizado pela descoberta da imensidão do universo.

Victor Hugo Cavalcante: Em seus versos, a desobediência feminina aparece como força criadora. De que maneira essa inquietação molda sua escrita e sua visão sobre o papel da mulher na literatura e na história?

A obediência é considerada uma das principais qualidades que uma menina deve ter.

Crescer como menina é ter todas as suas qualidades vinculadas à sua capacidade de obedecer.

Se você não obedece, você é feia, você é boba, você é má, você é uma decepção.

Suas travessuras são encaradas de forma muito mais gravosa do que as travessuras dos meninos, elas são vistas como verdadeiras falhas morais.

E isso tem tudo a ver com o machismo, com o patriarcado e com o comportamento esperado das mulheres quando elas crescem.

Sendo assim, desobedecer acaba sendo o primeiro passo que uma menina/mulher precisa dar para poder criar e pensar por conta própria, já que a criatividade é uma subversão que parte do questionamento, da percepção e da descoberta.

É impossível escrever um poema sem desobedecer ao que se espera que eu, como mulher e pessoa em idade (re)produtiva, deva fazer com o meu tempo.

As mulheres que vieram antes desobedeceram e, ao fazer isso em maior ou menor grau, criaram novos caminhos para mim, para as que vieram depois de mim e as que ainda virão.

As mulheres notáveis da ciência, das artes, do ativismo e também das nossas histórias pessoais são mulheres que, antes de qualquer coisa, desobedeceram às expectativas de gênero ao dizerem, a partir de suas ideias e comportamentos, que eram gentes.

Ainda que muitas precisassem fazer isso de maneira sutil.

Victor Hugo Cavalcante: O livro se estrutura em quatro capítulos, cada um precedido por um tributo a cientistas invisibilizados. Como foi o processo de pesquisa e escolha dessas figuras e o que elas significam na construção simbólica da obra?

Toda a divisão, nomes dos capítulos e comentários que precedem cada parte do livro foram pensados depois dos poemas já escritos e praticamente finalizados.

A partir do processo de edição com a Priscila Branco e a Milena Martins Moura na Macabéa Edições, eu percebi haver uma necessidade de segmentar os poemas para dar maior força ao livro enquanto projeto.

A partir disso, decidi trazer à tona cientistas invisibilizadas junto a elementos científicos como células e lentes de quartzo, porque considerei que isso ajudaria a colocar o livro como uma obra que fala sobre mulheres, a importância de suas vozes e feitos e a influência deles na construção do self de meninas e mulheres.

Afinal, a desobediência feminina é posta no livro como algo que tem um viés formativo individual e coletivo.

Os nomes de Rosalind Franklin e Cecilia Payne-Gaposchkin me vieram naturalmente, já que ambas sofreram com o “efeito Matilda” e seus temas de estudo se relacionam com temáticas da obra (DNA e componentes do universo).

Eu conhecia suas histórias por ser feminista e ter alimentado, por anos, um projeto que tinha como cerne principal uma página no Facebook chamada Mulheres Notáveis.

Victor Hugo Cavalcante: Você afirma que estado febril é, de certa forma, o livro que originou todos os outros. O que ele diz sobre sua própria trajetória como mulher e escritora?

Eu acho que os poemas do estado febril evidenciam para mim minhas motivações pessoais para escrever.

Eu acho que busquei, sem saber que estava buscando isso, investigar de onde veio a origem desse desejo de escrever literatura, fazer colagens, pintar quadros feios, ler muitos livros e mediar encontros literários.

Conclui então que quero me expressar, porque o universo que me compõem busca essa expansão a partir da alteridade.

E esse desejo vem também da constatação de que muitas que vieram antes de mim não puderam vivenciar a experiência reflexiva, dialética e criativa que a arte proporciona.

Victor Hugo Cavalcante: A escrita do livro atravessou oficinas, cursos e uma campanha de financiamento coletivo bem-sucedida. Como foi viver esse processo tão orgânico e coletivo de criação e publicação?

A criatividade, para mim, surge justamente desse contato do eu com o mundo.

O tensionamento do eu com o outro faz com que a gente amplie nossos repertórios, crie laços, veja nossa capacidade de contemplar se ampliar, sinta empatia e se conecte verdadeiramente com frases ditas por pessoas que a gente não conhece.

Poder conhecer a subjetividade das pessoas a partir da arte que elas fazem, gostam e consomem me ajuda a olhar para mim e para os meus desejos criativos com mais carinho e faz nascer uma gana inventiva em mim.

Tudo isso me agita, me faz querer buscar beleza, me dá vontade de criar alguma coisa que converse com as pessoas, mas que, ao mesmo tempo, parta do mundo em que eu vivo, questiono, invento e percebo.

Isso me lembra que sou parte, ainda que muitas vezes o sistema capitalista tente fazer a gente se esquecer disso.

Acho que a pré-venda via financiamento coletivo intensificou ainda mais essa minha visão de mundo tão coletiva e tão individual ao mesmo tempo, porque simbolizou para mim que, antes mesmo do livro estar impresso e circulando, ele já estava em diálogo com as pessoas.

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