Michael Maia estreia na literatura com o impactante Entre a vida e a morte, há vários documentos, um romance distópico que une crítica social, drama familiar e reflexões existenciais.
A obra se passa em um país que legalizou a “droga da morte”, substância que permite uma experiência mística antes do fim.
Nesse cenário, acompanhamos Luzia e Tânia, um casal lésbico diagnosticado com câncer terminal, e Antônio, irmão de Luzia e funcionário do órgão regulador da droga, que precisa lidar com as próprias perdas.
Nascido do luto pessoal do autor e de uma intensa pesquisa sobre bio política e controle dos corpos, o livro mergulha nos dilemas éticos e sociais que cercam o morrer, transformando o fim da vida em tema de debate sobre humanidade, afeto e desigualdade.
Com influências de Durkheim e Saramago, Maia constrói uma narrativa poética, densa e profundamente humana.
Nesta entrevista exclusiva com Michael Maia, você descobrirá os detalhes por trás de sua obra e do processo criativo que resultou nesse romance profundamente humano e transformador.
Victor Hugo Cavalcante: Primeiro, agradecemos por nos conceder essa entrevista e gostaríamos de perguntar: Sua trajetória como escritor começa com Entre a vida e a morte, há vários documentos, um romance que mistura crítica social, luto e ficção científica. Como foi para você dar esse primeiro passo no universo literário com um tema tão denso?
Michael Maia: Primeiramente queria agradecer a oportunidade de conversar com vocês, é um prazer imenso falar de escrita e principalmente de um projeto que me tomou longos meses de estudo, como o Entre a vida e a morte, há vários documentos.
Quando eu tive a ideia, era para ser ou uma história em quadrinhos, ou um conto, mas conversando com uma amiga, percebi que falar sobre luto social e suicídio coletivo em uma ficção me tomaria tempo em ter embasamento e não tirar ideias do bolso, principalmente pela densidade dos temas.
É um passo que dei com muito receio, ainda me pego olhando a história e lembrando dos fichamentos que fiz durante a pesquisa.
Victor Hugo Cavalcante: O título Entre a vida e a morte, há vários documentos é instigante e parece sugerir que há muita burocracia, literal ou simbólica, entre existir e partir. Como você chegou a esse nome e o que ele representa na narrativa?
A ideia inicial era se chamar Ciência da Morte, mas por sorte, na revisão da escrita, tive ajuda da Juliana Cury (mentora, preparadora, editora, etc.) da Algo Novo Editorial, ela quem me chamou para esse título instigante.
Dou os créditos a ela, principalmente porque eu odeio pensar em títulos e odiava a ideia de Ciência da Morte, não combinava nada com o texto e trajetória das personagens.
Victor Hugo Cavalcante: A “droga da morte” que dá acesso a uma experiência mística antes do fim é, ao mesmo tempo, poética e assustadora. Como surgiu essa ideia e o que ela representa para você em termos de crítica social?
Primeiro, é bom deixar claro que eu morro de medo de morrer. (Risos)
Já foi pior, fiquei paralisado por algum tempo em pensar na minha própria morte.
Imaginar uma morte feliz me causava um receio, por ser incerto, a droga no livro é dada como boato, as pessoas acreditam e tomam essa ideia para si, ela é uma experiência individual, e acaba se tornando coletiva (como a morte sempre foi e será).
Lembro de ouvir uma música e imaginar duas personagens tendo experiências distintas e se despedindo cada uma em sua própria mente, como um Romeu e Julieta em uma versão utópica.
Porém, a história não parava por aí, pensar primeiramente em um narcótico desse nível, dada as proporções sociais em que vivemos e no apagamento de certos corpos, o texto e as personagens precisavam ser bem mais desenvolvidos.
Saramago em As Intermitências da Morte fala muito sobre como morrer é social e político, todos os processos de nossa vida são focados no fim, e sem que a gente perceba.
Gosto sempre de frisar que sem este livro o Entre a vida não chegaria nem em sua metade.
Victor Hugo Cavalcante: Em meio à dor, à escolha e à despedida, o romance tem uma protagonista lésbica e seu núcleo familiar. Por que era importante para você trazer uma narrativa LGBT para o centro dessa distopia?
O que gosto de pensar é que a Luzia é uma personagem que vive em um futuro distópico, onde o ser uma mulher lésbica não é uma preocupação para ela, até em certa parte em que menciono o que pode ser o objetivo da política do Estado em que ela vive.
Mas o meu foco inicial era fugir de um comodismo em tratar duas lésbicas com o romance atrapalhado por preconceitos de uma sociedade, mas sim de uma burocracia envolvendo o morrer.
A questão é, nunca seremos os mesmos quando lidamos com o fim.
Victor Hugo Cavalcante: Você comentou que o livro Entre a vida e a morte, há vários documentos também nasceu do luto por uma amiga. Como esse processo pessoal se entrelaçou ao seu processo criativo e às influências literárias que marcaram a construção do romance?
Era final de 2022 e eu estava com quase todos os fichamentos prontos, estudava Durkheim em O Suicídio e bio política de Foucault, era necessário entender como seria esse “controle dos corpos” pelo governo da ficção.
A história do Entre a vida seria um pouco diferente, a primeira ficha do personagem Antônio constava que ele era um “agente de inspeção do Governo”, alguém que ficaria a cargo de investigar os pretendentes da droga da morte, ele seria ainda impactado pela escolha da irmã, mas investigaria as intenções da mesma por escolha pessoal.
Então, uma grande amiga sofreu um acidente e confesso que naquele momento eu abandonei os estudos e o início da escrita, por medo, por luto, diversos motivos.
Quando voltei já em fevereiro de 2023, não havia formas de continuar uma história de suspense, o que eu sentia durante a escrita era raiva, remorso, tristeza, todos os sentimentos que o luto nos proporciona de uma vez só, ao final, o Entre a vida que seria um livro de ação policial se tornou um drama familiar, um homem que tenta recuperar o tempo perdido com sua amada irmã.
Victor Hugo Cavalcante: Quais caminhos você imagina seguir agora como autor? Já tem em mente novos projetos ou gêneros que pretende explorar nos próximos anos?
O Entre a vida me proporciona conhecer leitores e autores incríveis, sempre há uma nova indicação, um texto ou livro que conversa com a história, me sinto honrado a cada dia.
Voltei a pesquisar corpos, principalmente o corpo travesti (personagem principal em minha nova história), e conforme lapidados em sociedade e cultura, um corpo sempre será impactado pelo meio.
Estarei imerso em um realismo fantástico, penso em um corpo que proporciona experiência a outro apenas pelo toque, penso em relações de poder, etc.
Há muitos temas e agora quero tomar mais tempo para aprender e embasar mais, entrevistar pessoas para criar personagens contundentes com a realidade.
Acredito que a parte da pesquisa do projeto é a que mais me dá prazer, aprender sempre será interessante.
A gente não tira as ideias do bolso, elas vão crescendo até não caberem mais na cabeça.