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Denim Day: Um movimento global contra a cultura do estupro

Descubra como um protesto na Itália viralizou no mundo, ocasionando em um chamado global à conscientização e ação contra a violência sexual.

Foto ilustrativa de mulheres sorridentes usando calças jeans.

Na década de 1990 surgia um movimento na Itália de apoio às vítimas de agressão sexual que teve origem após um julgamento de caso de estupro.

Na época, a Suprema Corte Italiana reverteu a condenação de um homem que havia estuprado uma jovem, alegando que, como ela usava jeans apertados, ela teria ajudado a remover o jeans voluntariamente, invalidando assim sua denúncia de estupro.

No dia seguinte, em demonstração de revolta e repúdio à reversão da sentença, todas as mulheres do parlamento do país foram trabalhar com jeans em solidariedade à vítima do caso.

Esse veredicto chocante provocou uma onda de protestos e solidariedade das mulheres do parlamento italiano que foram trabalhar com jeans em solidariedade à vítima do caso.

Assim, esta manifestação levou à criação do Denim Day no dia 24 de abril que surgiu como um símbolo de resistência e apoio às vítimas de agressão sexual.

Apesar de tudo ter começado devido a uma calça jeans, o Denim Day não se limita apenas a vestir esta peça de roupa; ele é um chamado à ação para desafiar os mitos e estereótipos que perpetuam a cultura de estupro.

Ao vestir jeans, os participantes demonstram solidariedade com as vítimas de agressão sexual e se comprometem a combater o preconceito, a desigualdade de gênero e acima de tudo a cultura do estupro.

Mas, afinal, porque, infelizmente, ainda há a culpabilização da mulher vítima de estupro, especialmente em relação ao seu vestuário?

Quem explica um pouco sobre o que há por trás dos aspectos psicológicos e sociais profundamente enraizados na perpetuação da cultura de estupro é a psicóloga e neuropsicóloga Dr.ᵃ Elaine Di Sarno:

“A cultura do estupro é um fenômeno complexo e multifacetado, influenciado por uma série de fatores psicológicos, sociais e culturais. Algumas questões contribuem para a perpetuação dessa cultura e a culpabilização das vítimas, especialmente mulheres”.

Ainda segundo a psicóloga, as normas de gênero tradicionais frequentemente atribuem papéis específicos e expectativas às mulheres, incluindo a ideia de que devem ser submissas e passivas.

Essas normas podem levar à culpabilização da vítima quando uma mulher é estuprada, com a ideia de que ela deveria ter agido de maneira diferente para evitar o ataque.

“Muitas sociedades têm mitos arraigados sobre estupro, como a ideia de que as vítimas de estupro de alguma forma ‘provocaram’ o agressor ou que estavam pedindo por isso com base em sua aparência ou comportamento. Esses mitos perpetuam a ideia de que a vítima é parcialmente responsável pelo crime”.

A Mestre em Ciências pela USP e especialista em Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) também afirma que desde a infância, meninos e meninas são frequentemente socializados de maneiras diferentes em relação ao sexo e ao consentimento.

Isso pode levar a uma percepção distorcida de que os homens têm o direito de buscar sexo e que as mulheres devem resistir ativamente às investidas masculinas.

“A desigualdade de poder entre homens e mulheres em muitas sociedades pode levar a situações em que os homens sentem que têm o direito de exercer controle sobre as mulheres, inclusive pela violência sexual. Essa desigualdade também pode influenciar como os casos de estupro são tratados pelas autoridades e pela mídia”.

Em muitos casos de estupro, não há testemunhas além do agressor e da vítima e, segundo Dr.ᵃ Elaine, isso pode levar a uma situação em que a palavra da vítima é contestada ou desacreditada, especialmente se o agressor é uma figura de autoridade ou se a vítima tem menos poder social.

“Esses são apenas alguns dos muitos fatores que contribuem para a perpetuação da cultura do estupro e a culpabilização das vítimas. Mudar essa cultura exige esforços contínuos em níveis individual, comunitário e institucional para desafiar as atitudes prejudiciais e promover o respeito pelos direitos e dignidade de todas as pessoas”, finaliza Elaine Di Sarno.

A psicóloga também aborda os principais obstáculos emocionais enfrentados por vítimas de abuso sexual/estupro, além de destacar os recursos disponíveis para auxiliá-las na superação desses desafios e no início do processo de recuperação.

“As vítimas de abuso sexual e estupro enfrentam uma série de desafios emocionais após o trauma. Alguns desses desafios incluem trauma psicológico significativo”.

“Muitas vítimas de abuso sexual lutam com sentimentos intensos de culpa e vergonha, às vezes culpando erroneamente a si mesmas pelo que aconteceu. O trauma do abuso sexual também pode levar as vítimas a se sentirem isoladas e desconectadas dos outros, especialmente se tiverem medo de serem julgadas ou não acreditadas”.

Ainda segundo Elaine, o abuso sexual pode afetar, ainda, os relacionamentos interpessoais das vítimas, levando a dificuldades de confiança, intimidade e comunicação.

“Existe a maior possibilidade de desenvolver outros problemas de saúde mental, como depressão, transtornos de ansiedade, distúrbios alimentares e abuso de substâncias”.

A psicóloga explica que para ajudar as vítimas de abuso sexual a superarem esses desafios e iniciar seu processo de recuperação, uma variedade de recursos está disponível, como, por exemplo:

  • Terapia com um(a) psicólogo(a) para auxiliar as vítimas a processarem o que aconteceu, lidar com suas emoções e desenvolver estratégias de enfrentamento saudáveis.
  • Participar de grupos de apoio para sobreviventes de abuso sexual pode fornecer um espaço seguro para compartilhar experiências, sentir-se compreendido e obter apoio mútuo de outras pessoas que passaram por situações semelhantes.

Elaine Di Sarno ainda salienta a importância de as vítimas de abuso sexual receberem cuidados médicos adequados, incluindo tratamento para lesões físicas, prevenção de gravidez e doenças sexualmente transmissíveis e exames de saúde mental.

“Promover a conscientização sobre o abuso sexual e os recursos disponíveis para sobreviventes pode ajudar a reduzir o estigma associado ao trauma e encorajar mais pessoas a buscar ajuda. Esses recursos podem variar conforme a localização geográfica e a disponibilidade de serviços, mas é importante que as vítimas saibam que não estão sozinhas e que existem pessoas e organizações dispostas a ajudá-las em seu processo de recuperação”, finaliza a neuropsicóloga.

Como vimos, combater a cultura do estupro requer esforços para desafiar e mudar essas atitudes e crenças, promovendo o respeito pelos direitos sexuais e a igualdade de gênero, mas como podemos fazer isso?

Combatendo a cultura de estupro

Crédito: Getty Images

Como já dizemos, é de vital importância que cada vez mais aumente o combate a cultura do estupro, e a escola pode ser um bom começo.

A professora Ana Elisa responde porque é importante que o sistema educacional promova uma conscientização contra a cultura do estupro:

“Tendo em vista que vivemos em uma sociedade machista onde a cultura do estupro está enraizada em nosso comportamento, a escola também, como parte desta sociedade, apresenta esses padrões e a quebra desse padrão é extremamente difícil, interna e externamente, e não ocorre de um dia para o outro, ao longo dos anos observamos movimentos sociais, partidos políticos e grupos independentes lutando contra esse padrão de pensamento, a escola tem o papel de apresentar aos alunos e comunidade escolar essas mudanças sociais, promovendo discussões e fazendo parte do currículo desde a educação infantil, apresentando uma forma de comportamento e de ver a sociedade com um viés mais libertário. Entretanto, é importante pontuar que a escola, até por fazer parte desta sociedade, não está ilesa e portanto carregar esta difícil tarefa sozinha, como se fosse uma instituição com o poder de salvação social, não é coerente. Temos sempre de lembrar que essa instituição é apenas uma parte do dia do estudante e que estes participam de diversos outros grupos que apresentam também grande inflexibilidade quando esse assunto é levantado”.

Ela ainda responde como as instituições educacionais podem auxiliar no combate a cultura de estupro:

“O dia a dia é a melhor e maior ferramenta na escola, trabalhar educação sexual nas escolas como um tema transversal, que, portanto aparece em todos os anos escolares e em diversas disciplinas é a melhor forma de desnaturalizar este padrão da cultura do estupro, claro que é importante ressaltar que essas discussões no ambiente escolar estão adequadas as faixas etárias, na educação infantil trabalhamos com o cuidado do corpo, o espaço do eu e do outro, tanto quanto a naturalização de mulheres ocupando os mais diversos papéis na sociedade, com o passar dos anos essas discussões passam a ficar mais nítidas e conceitos importantes são adicionados”.

O estupro e seu tratamento jurídico penal

Crédito: Getty Images

Imagine a situação seguinte: um homem comete estupro contra uma garota, mas o crime é invalidado depois que ele se casa com a vítima.

Isso parece absurdo?

Até 2005, o Código Penal Brasileiro permitia o casamento entre estuprador e vítima, mesmo quando esta era uma criança.

Somente em 2019 foi proibido no país o casamento de menores de 16 anos.

Essas mudanças foram tardias, mas necessárias, sendo resultados da luta das mulheres contra a cultura do estupro.

O crime de estupro está tipificado no artigo 213 do Código Penal Brasileiro.

A legislação brasileira de 2009 considera estupro qualquer ato libidinoso realizado contra a vontade da vítima ou contra alguém que não possa oferecer resistência.

Se for contra a vontade da pessoa ou se ela estiver incapaz de consentir, constitui crime, independentemente das circunstâncias.

Antes disso, o ato só era caracterizado quando envolvia conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça.

Apesar dos avanços sociais e jurídicos, ainda persiste nos meios judiciais uma lamentável tendência à culpabilização das mulheres vítimas de estupro.

Um exemplo emblemático é o caso da jovem Mariana Ferrer, submetida a inúmeras indagações sobre sua vestimenta, sua presença em uma balada e seu comportamento, como se esses fatores justificassem o crime hediondo que sofreu.

A advogada Dr.ᵃ Lisiana Carraro comenta alguns desafios específicos que advogados e promotores ainda enfrentam ao lidar com julgamentos de crimes sexuais:

“Às vezes parece um pouco batido a gente falar de novo e de novo sobre as questões de desigualdade de gênero, mas infelizmente isso é uma construção cultural, são costumes trazidos e isso não é só do Brasil, isso acontece também em outros países. Mas o que é importante a gente sempre referenciar é que isso precisa ser falado e esses movimentos são mais significativos a partir da década de 70 aqui no Brasil com um resguardo na Constituição Federal de 1988, depois uma alteração no Código Civil de 1916 para 2002, onde busca resguardar essa igualdade em relação a homens e mulheres, demanda aí nessa transformação social, demanda ainda uma intervenção e um olhar de participação de todos em relação a essas questões. O judiciário, infelizmente, em alguns espaços, ainda enfrenta algumas dificuldades em tratar com essas questões, por vezes, a gente verifica que o direito dessas mulheres é omitido em face, inclusive, de sensibilizar esses órgãos e essa estrutura para situações que efetivamente acontecem”.

“Quando eu falo da importância tanto do judiciário quanto dos órgãos que recebem essas denúncias dessas mulheres, a meu ver, me parece que esses espaços precisam ter os profissionais sensibilizados para esse olhar, devidamente qualificados para atender a essa demanda. A meu ver, o acolhimento é extremamente importante porque a vulnerabilidade psicológica dessas mulheres quando acontecem os fatos que agridem ela, que ofendem ela, que colocam ela em uma situação de objeto ou até mesmo inferiorizadas e, de novo, perceba que não é só na questão da violência de relacionamento, é também a violência no ambiente de trabalho por meio do assédio, o quanto é importante nós verificarmos a condição em que ela está procurando ajuda e não um espaço de profissionais que vão julgar ela pelo fato de ela se vestir de uma determinada forma, de ela falar alto, de ela usar uma saia acima do joelho ou uma roupa mais justa, nada disso, nada disso justifica a questão de desrespeito ou de ofensa a ela como indivíduo e cidadã”, complementa a advogada.

Ela ainda cita como o sistema legal pode trabalhar para combater a cultura de estupro e garantir julgamentos justos e imparciais para todas as partes envolvidas.

“Situações em que há um julgamento em relação a essa mulher ou até mesmo culpando-a pelo ocorrido, infelizmente, só enfraquecem as mulheres no sentido de dar voz e visibilidade para que efetivamente o que acontece”.

A advogada ainda afirma “que quando uma mulher chega em um espaço para fazer uma denúncia, ela rompeu várias barreiras, barreiras de medo, de vergonha, de o que vão julgá-la, o que vão pensar sobre ela. Então, o fato de ela já ter conseguido ir para esse espaço já é uma grande vitória”.

“Aí você imagina ela ter que se colocar na frente de profissionais que vão desconsiderar ou até mesmo imputar a ela uma culpa por tudo que aconteceu com ela. Então, isso deve ser olhado imediatamente. Há 27 anos eu trabalho com mulheres e vejo a dificuldade que tem de romper esses medos, essas vergonhas e, infelizmente, a insegurança de que vá ser feito alguma coisa efetivamente com quem desrespeita a sua integridade física e moral”, complementa a advogada do Lisiana Carraro Advogados Associados.

“Então, isso precisa mudar, precisamos fazer esse movimento, precisamos olhar para essas mulheres, precisamos, a meu ver, como título de sugestão, qualificar essas pessoas, preparar essas pessoas para não continuarmos com a fala de que por uma questão cultural, machista, patriarcal, o entendimento deve ser esse. Vamos olhar os indivíduos da forma que eles merecem, com a igualdade que lhes é garantida constitucionalmente. E mais, todos nós, todos nós é que somos responsáveis para fazer valer o direito dessas mulheres. Pensemos nas nossas filhas para que elas não sofram o que muitas mulheres sofrem”, finaliza Lisiana Carraro.

Como visto nesta matéria, apesar dos avanços na conscientização sobre a violência sexual, a cultura de estupro continua sendo uma realidade perturbadora em muitas sociedades.

A culpabilização da vítima, a minimização da gravidade do problema e a impunidade dos agressores são obstáculos significativos que precisam ser superados.

O Denim Day serve como um lembrete de que a luta contra a violência sexual é contínua e exige o envolvimento de todos.

Por isso, à medida que nos unimos para celebrar o Denim Day, é crucial lembrar que nossa luta contra a cultura de estupro não termina aqui.

Cada par de jeans usado em solidariedade é um lembrete do poder da conscientização e da ação coletiva na promoção de uma sociedade mais segura e justa para todos.

Devemos continuar apoiando as vítimas, desafiando as normas prejudiciais e trabalhando juntos para construir um futuro onde todos possam viver livres do medo da violência sexual.

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