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Espetáculo transforma traumas geracionais em narrativa

Caio Scot e Felipe Rocha encenam em Papaizinho as dificuldades de representar os papéis de filho e pai — tanto na vida quanto no palco.

Cena do espetáculo Papaizinho.

Crédito da foto principal: Annelize Tozetto.

O livro Quem matou meu pai, do escritor francês Édouard Louis, serviu como disparador criativo para o ator, diretor e dramaturgo Caio Scot.

Deste encontro nasceu Papaizinho, espetáculo inédito em São Paulo, com dramaturgia coletiva assinada por Caio, Felipe Rocha, Júlia Portes, Lucas Cunha e Luisa Espindula, que coassina a direção junto ao Caio.

Além de ser inspirado no livro que explora o universo íntimo de um filho gay e sua relação com o mundo e com o seu pai, a montagem vai além de incorporar as vivências pessoais de Caio.

A peça mistura memórias, resgatadas de antigas fitas de VHS de sua família, com as gravações feitas para a busca de um pai para o espetáculo.

Juntando Caio Scot e Felipe Rocha no palco, o espetáculo tem curta temporada, a partir de 27 de novembro, com apresentações às quintas, sextas e sábados, às 20h, e aos domingos, às 18h, no Sesc Belenzinho.

O espetáculo coloca Édouard, Caio e seus pais, além de outros pais, frente a frente em uma jornada de autodescoberta.

O protagonista, ainda um garoto, enfrenta o espelho tentando entender o que o seu corpo representava para que o chamassem de “viado”.

Já adulto, ele visita o pai, que não vê há muito tempo.

Quando o pai abre a porta, ele se depara com alguém que não reconhece mais.

Nesse encontro, marcado pela solidão e pela incomunicabilidade, os dois se veem imersos em uma história de intolerância, resistência e dificuldade de conexão.

A montagem apresenta diversas histórias de pais e filhos, explorando diferentes tipos de relações, muitas vezes em que as trocas se desfazem ou se perdem, revelando a complexidade dessas figuras.

As projeções em vídeo complementam a narrativa, trazendo histórias que vão da negligência e da falta de afeto, temas recorrentes nas relações paternas, ao amor incondicional dos pais que colocam seus filhos no centro de sua vida.

Ao longo do desenvolvimento da dramaturgia, todo o material levou a equipe a refletir sobre a importância de questionar papéis que pais e filhos desempenham nas suas vidas.

Afinal, o que significa ser pai e o que significa ser filho? O que é responsabilidade de cada um?

O espetáculo não só revisita questões pessoais de Caio, mas também se entrelaça profundamente com a obra de Édouard Louis, Quem Matou Meu Pai.

No livro, a violência do sistema patriarcal e os ciclos de abuso e opressão se refletem nas relações familiares, especialmente entre pai e filho.

Por meio de uma análise crua e sincera, Louis expõe as marcas deixadas por um pai autoritário e cruel, que perpetua, sem saber, o sofrimento de seu filho, ao mesmo tempo em que carrega em si as cicatrizes de uma sociedade que define os homens por sua dureza, resistência e opressão.

A peça, embora distante da narrativa literal do livro, se apropria desse mesmo embate de gerações, da luta por uma reinvenção das relações, questionando as expectativas impostas sobre o que significa ser pai ou filho.

No palco, como no livro, a figura do pai é construída não somente como um indivíduo, mas como uma representação das normas sociais que governam os corpos e os afetos, muitas vezes de maneira destrutiva.

A busca de Caio, o protagonista do espetáculo, por um “pai”, seja ele literal ou simbólico, remete à luta de Louis para entender a sua relação com o seu próprio pai, um homem moldado por um sistema que o impede de ser vulnerável, de se reinventar, de expressar afeto.

Porém, enquanto o livro se concentra nas duras constatações sobre a violência estrutural e pessoal que define essa relação, o espetáculo abre espaço para a possibilidade de um futuro mais aberto e menos determinista.

Ao invés de fechar a narrativa com a resignação ou com a repetição do ciclo de violência, o espetáculo aponta para a potência da transformação e da reinvenção.

Ao buscar diferentes pais por meio das audições e ao explorar a pluralidade das histórias de pais e filhos, a montagem sugere que a figura paterna pode ser desconstruída, questionada e, acima de tudo, reinventada, ao contrário do que é imposto na rígida visão de Édouard Louis.

Em um mundo onde as dificuldades e os traumas familiares são frequentemente tratados com rigidez e fatalismo, o espetáculo propõe uma visão mais fluida e complexa.

Ele não oferece respostas fáceis, mas convida o público a refletir sobre o que significa ser filho e ser pai em uma sociedade que constantemente nos impõe papéis preestabelecidos.

Da mesma forma que Quem Matou Meu Pai desmantela as verdades absolutas sobre a figura do pai, o espetáculo também se propõe a questionar: como podemos, enquanto filhos, e como podemos, enquanto pais, reconstruir nossas relações, livres das amarras de um passado que já nos machucou tanto?

Por fim, tanto o livro quanto o espetáculo mostram que, ao confrontar nossas histórias familiares, podemos abrir novos caminhos para o futuro e talvez, nesse processo, resgatar a humanidade que, muitas vezes, foi perdida nas sombras da violência, da negligência e da incompreensão.

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