Escrito por Victor Hugo Cavalcante, editor e jornalista do site Jornal Folk (Crédito: Arquivo).
Em sociedades marcadas pela violência urbana e pela sensação de impunidade, o desejo por justiça frequentemente assume contornos de vingança.
Essa confusão não é somente popular; ela também contamina o debate político e institucional, fragilizando o sistema jurídico e corroendo direitos fundamentais.
Casos emblemáticos, como acordos judiciais controversos em que criminosos recebem sentenças brandas em troca de delações, alimentam o discurso de que o sistema “protege bandidos” ou “trai as vítimas”.
Essa percepção de impunidade abre espaço para o desejo de vingança e para a adoção de soluções extralegais.
O filme Código de Conduta (2009) ilustra com clareza essa tensão.
O protagonista Clyde Shelton, inconformado com a possível redução da pena ou soltura do assassino de sua família por meio de um acordo judicial, enxerga essa concessão como uma traição à justiça.
Para ele, a pena original, mais severa, seria o mínimo aceitável.
Sentindo-se injustiçado pelo sistema, Clyde decide agir por conta própria, aplicando uma vingança violenta que atinge não só os criminosos, mas também todos os envolvidos no processo judicial.
Ao mesmo tempo, o poder público recorre a ações extralegais para conter a ameaça, revelando a hipocrisia e o risco de o Estado usar a violência que deveria combater.
Contudo, o filme não endossa a justiça com as próprias mãos como solução legítima.
Ao contrário, ele mostra os perigos e as consequências trágicas de tais ações extralegais, incluindo o ciclo de violência e a escalada do conflito que ameaçam a ordem social e a própria ideia de justiça.
Também denuncia a hipocrisia do Estado, que ao tentar conter a ameaça com métodos igualmente ilegítimos, contribui para corroer a confiança nas instituições.
Essa narrativa funciona como um alerta: o sistema penal falho e a ausência de respostas efetivas podem levar indivíduos desesperados a tomar medidas extremas, mas essas atitudes acabam por fragilizar ainda mais o Estado de Direito e aprofundar o problema da violência.
O conflito do filme remete ao conceito da Trindade Paradoxal de Clausewitz, originalmente aplicado à guerra, que descreve o equilíbrio instável entre emoção popular (ódio e violência), racionalidade política (objetivos do Estado) e cálculo técnico (estratégias para alcançá-los).
No sistema penal, essa tríade traduz a tensão entre a necessidade de punição rigorosa, o respeito à ordem pública e a aplicação técnica das leis.
Quando o equilíbrio é rompido — seja pela prevalência da vingança popular, pelo distanciamento do Estado da opinião pública, ou pela aplicação fria e burocrática da lei —, o sistema penal sofre desequilíbrios que podem levar à injustiça, à perda de legitimidade e à perpetuação da violência.
No Brasil, esse debate é urgente.
Presídios superlotados, desigualdade no acesso à defesa, violência policial letal e morosidade judicial alimentam a crise de confiança nas instituições.
O desafio é construir um sistema penal que não somente puna, mas que previna o crime e respeite os direitos humanos, evitando que a busca por justiça descambe para a vingança e a arbitrariedade.
Assim, tanto o filme quanto o debate jurídico nos convidam a refletir: alguma justiça, ainda que imperfeita, é melhor do que a ausência total dela?
E até que ponto o Estado pode ir para garantir a ordem sem trair seus próprios princípios?
Entender esses dilemas é fundamental para avançar na construção de uma justiça legítima, eficaz e democrática, capaz de equilibrar a punição com a dignidade humana e os direitos fundamentais.
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