Na segunda temporada da nova fase de Doctor Who, o episódio Wish World mergulha numa crítica profunda aos perigos do culto à perfeição e à criação de realidades artificiais onde tudo parece ideal — mas somente à custa da exclusão sistemática de tudo o que é considerado “fora da norma”.
Conrad Clark, criador deste “mundo dos desejos”, idealizou uma sociedade perfeita após anos de frustrações, rejeições e insegurança emocional.
Ao alimentar a ideia de uma realidade sem dor, diversidade ou conflito, ele não somente reprime sua humanidade como impõe aos outros uma prisão disfarçada de paraíso.
Somente Ruby Sunday — junto a pessoas em situação de rua e outros marginalizados — percebe que algo está errado.
Isso porque, como aponta a narrativa, são justamente os invisibilizados que conseguem enxergar as rachaduras de um sistema que os exclui.
Essa percepção reforça uma crítica clara: os que vivem à margem da sociedade são os únicos com sensibilidade e lucidez para notar quando a utopia se torna distopia.
E neste universo, quem começa a questionar o sistema é rapidamente neutralizado — seja sendo preso, ignorado ou sumariamente “apagado”.
Clark genuinamente desejava proteger as pessoas — e a si — do sofrimento.
Ao usar o poder do bebê Desiderium, capaz de realizar desejos, ele construiu um mundo “perfeito” onde tudo parece feliz, colorido e harmônico.
Contudo, ao moldar a realidade com base em sua visão unilateral de perfeição, ele acaba reproduzindo o mesmo tipo de exclusão e repressão que o feriu no passado.
O que começa como um desejo de bem-estar se transforma em uma estrutura de controle total: quem não se encaixa, “desaparece” e quem duvida, é silenciado.
Nesse projeto de mundo idealizado, a participação da Rani adiciona outra camada de complexidade.
Cientista genial, amoral e obcecada por controle, a Rani não compartilha necessariamente dos ideais emocionais de Conrad Clark — ela nunca foi movida por empatia, mas sim por eficiência, ordem e dominação científica sobre o caos da vida.
Seus motivos para colaborar com Conrad podem ser múltiplos e complementares:
- Manipulação estratégica: É possível que ela tenha se aproveitado da fragilidade emocional de Clark para alcançar seus próprios fins — talvez experimentando os limites do controle de desejos e da engenharia social em larga escala.
- Desprezo pela imperfeição: A Rani sempre viu os seres humanos e outras espécies como “matéria-prima” para suas experiências. Um mundo onde tudo funciona perfeitamente, onde os indesejados são eliminados e onde o comportamento é previsível, pode representar para ela o laboratório social perfeito.
- Obcecada por ordem: Diferente do Mestre (que deseja o caos), a Rani deseja controle absoluto. Ao eliminar o erro, a dor e a imprevisibilidade, ela constrói uma sociedade onde a ciência e a lógica são absolutas — mesmo que isso signifique sacrificar o livre-arbítrio.
Em suma, se Conrad deseja um mundo sem sofrimento por medo da dor, a Rani o deseja por desprezo à fragilidade e à desordem da condição humana.
Enquanto ele busca consolo, ela busca domínio e juntos criam uma utopia plástica onde o que é vivo se torna descartável.
A crítica do episódio se conecta diretamente com o positivismo tóxico contemporâneo, onde a felicidade constante, o sucesso absoluto e a aparência de perfeição se tornaram metas inalcançáveis e opressoras.
O episódio dialoga com a obra de George Orwell, 1984, ao revelar como a supressão da subjetividade e do pensamento crítico pode parecer sedutora quando embalada em cores vibrantes, sorrisos forçados e uma estética de comercial de TV.
Aceitar que somos “perfeitos imperfeitos” — ou mesmo “imperfeitos perfeitos” — é um ato de resistência contra os padrões utópicos impostos pela sociedade. Essa ideia ecoa a crítica do episódio, revelando que a humanidade reside justamente em nossa vulnerabilidade, na pluralidade de experiências e emoções.
A imperfeição, longe de ser uma falha, é o que nos torna singulares e plenamente humanos.
Ao tentar apagar essa condição para criar um mundo supostamente melhor, o episódio mostra que também se apaga a empatia, a diversidade e a liberdade.
É na imperfeição compartilhada que mora a possibilidade de um mundo mais justo e verdadeiramente coletivo.
Assim como em 1984, a perfeição neste universo é uma farsa mantida por medo e controle.
E como o episódio nos lembra, a verdadeira liberdade está na aceitação da complexidade da existência — e não em prisões douradas que mascaram a opressão.