Em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea, o Brasil pôs fim oficial ao regime escravocrata.
No entanto, 136 anos depois, os impactos da escravidão ainda moldam profundamente a sociedade brasileira, alimentando desigualdades sociais, econômicas e jurídicas que se perpetuam até hoje.
Para refletir sobre esse marco histórico e seus efeitos atuais, o JornalFolk conversou com os advogados Fellipe Souza, Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, e William Carvalho, pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, bem como Processo Civil, que analisam o papel do sistema jurídico na reparação histórica e no combate ao racismo estrutural.
A dívida jurídica da abolição sem reparação

A abolição da escravidão no Brasil ocorreu sem qualquer política pública de reparação.
Para o advogado Fellipe Souza, especialista em Filosofia e Teoria Geral do Estado pela FADISP e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, essa omissão gerou consequências jurídicas graves e duradouras.
“O maior impacto jurídico dessa omissão é transformar um sistema prisional precário em uma espécie de navio negreiro atualizado”, afirma Souza.
Ele explica que a ausência de políticas reparatórias representa uma violação contínua de direitos fundamentais.
Ele explica que a ausência de políticas reparatórias representa uma violação contínua de direitos fundamentais.
Já William Carvalho, advogado com atuação nas áreas de Direito do Consumidor, Previdenciário, Trabalhista e Digital, que conta com mais de 280 mil inscritos em seu canal no YouTube, afirma:
“Essa omissão sustenta uma condição permanente de vulnerabilidade social e econômica da população negra. O Estado tem responsabilidade objetiva por isso”.
Constituição e Estatuto: avanços importantes, mas insuficientes
A Constituição de 1988 e o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n.º 12.288/2010) representaram avanços importantes, mas, para os advogados, não bastam.
“Essas medidas, embora fundamentais, ainda são insuficientes para sanar integralmente os efeitos profundos e estruturais da escravidão”, avaliam.
Eles também observam que, mesmo 15 anos após a criação do Estatuto da Igualdade Racial, “são necessárias políticas mais abrangentes e reparações efetivamente proporcionais à dimensão histórica e social dessa violação de direitos humanos”.
Sobre as cotas raciais e demais ações afirmativas, os especialistas reforçam haver respaldo legal claro.
“A Constituição Federal de 1988 é base jurídica elementar de políticas afirmativas que visam o combate às desigualdades, sobretudo das cotas raciais. Ações afirmativas, como as cotas raciais em universidades e concursos públicos, têm sólida base constitucional e legal”.
Os advogados explicam que a Constituição de 1988 legitima tais ações no artigo 3º, IV (promoção do bem de todos sem discriminação), e no artigo 5º, caput e inciso I (igualdade material e formal).
Além disso, o artigo 7º do Estatuto da Igualdade Racial prevê explicitamente a adoção de medidas afirmativas para combater desigualdades étnico-raciais.
“O Supremo Tribunal Federal (STF), na histórica decisão da ADPF 186/DF em 2012, afirmou categoricamente a constitucionalidade das ações afirmativas, reconhecendo-as como instrumentos legítimos e necessários para alcançar a igualdade substantiva, corrigindo as distorções provocadas pela escravidão e pelo racismo estrutural”, finalizam William e Fellipe.
Questionados sobre a possibilidade de o Brasil adotar mecanismos formais de reparação, os dois advogados são unânimes: há caminhos possíveis, caso haja vontade política.
Segundo eles, o Estado brasileiro pode adotar uma postura de reconhecimento formal e reparação através de diversas vias legais:
• Legislação específica de reparação: aprovação de lei federal que reconheça oficialmente os crimes cometidos durante a escravidão e institua reparações econômicas, sociais e educacionais;
• Comissão da Verdade sobre a Escravidão: semelhante às comissões da verdade pós-ditadura militar, poderia investigar e documentar oficialmente os impactos históricos da escravidão, recomendando ações concretas de reparação;
• Decisões judiciais estratégicas: ações civis públicas e outras ações coletivas promovidas pelo Ministério Público, Defensorias Públicas ou movimentos sociais, exigindo o cumprimento dos deveres constitucionais de reparação.
Para os advogados William Carvalho e Fellipe Souza, “não haverá justiça racial enquanto não encerrarmos a hipocrisia de tratar racismo como mero injúria racial”.
Assim, segundo os especialistas, para uma atuação mais efetiva contra o racismo estrutural, o sistema de Justiça deve:
• Fortalecer a aplicação da legislação antirracista com o aprimoramento de mecanismos processuais para coibir práticas discriminatórias e racistas em instituições públicas e privadas;
• Tomar decisões paradigmáticas antirracistas: o Judiciário precisa reconhecer a existência do racismo estrutural e adotar jurisprudências progressistas que contribuam para transformar estruturas institucionais racistas;
• Gerar maior inclusão racial no próprio sistema judiciário através deimplementação de cotas raciais e políticas afirmativas para ingresso em carreiras jurídicas, como magistratura e Ministério Público, tornando o Judiciário mais representativo e menos discriminatório.
Encerramos esta reportagem com a certeza de que a luta antirracista exige ações contínuas e coletivas.
A data de 13 de maio não deve ser celebrada como um mito de liberdade concedida, mas como um marco de resistência e mobilização permanente.
Que esta matéria seja mais um passo na direção de um país que reconhece sua história, enfrenta suas desigualdades e constrói uma justiça verdadeiramente inclusiva.
Que reportagem importante! Parabéns. Estes advogados deveriam estar no congresso.